Aqui fica a conclusão do que me aconteceu em 2003. Nessa altura fui preso e expulso da linha da frente pelo mesmo exército que hoje me levou para a guerra.
As voltas que a vida dá.
Luís Castro
Excertos do livro Repórter de Guerra, editado em Junho de 2007
- Quem são vocês?
- Somos jornalistas…
- Isso já eu vi. O que fazem aqui?
O tipo tem cerca de dois metros de altura, está fardado, tem capacete na cabeça, máscara antigás pendurada ao pescoço, cantil no cinturão e sei lá que mais, faz cara de mau e está armado em parvo.
- Procuramos um jornalista da CBS, o Mário.
- Vocês não sabem que não podem estar aqui?
- Mas foram os soldados que nos trouxeram para aqui…
- Têm fatos NBQ?
É um dos outros dois jornalistas a quem dei boleia que responde:
- Não.
- Não têm? Vocês são malucos, são suicidas. Podem pôr-nos a todos
Desde o início que pensámos tratar-se de um comandante qualquer, tal é o ar de imponência e de “comando”.
- Onde estão as vossas credenciais?
- Já lhe disse, somos jornalistas. E você quem é?
- Sou Ted Copeel, pivô da ABC!
- Ó meu, vai pró caralho. Vai-te foder! Brinca lá à guerra e deixa-nos
(…)
Encontrámos o Mário Rui, o cameraman português da CBS. Com ele vem um major que fica completamente descontrolado ao saber que os outros dois jornalistas não têm fatos NBQ. Fico perplexo com o que oiço:
- Deixa-os ficar e segues connosco!
Explico que não o posso fazer. Nunca deixaria dois camaradas de profissão no meio do deserto, apeados.
- Faz como quiseres. Então, todos daqui para fora!
Explico que mandar-nos embora, é praticamente o mesmo que nos mandar á morte, uma vez que estamos no campo de batalha e no meio de uma tempestade terrível. O oficial americano nem quer ouvir a minha argumentação e decido recuar um pouco à procura de uma unidade que possa transportar os outros dois jornalistas israelitas com credenciais francesas rumo ao Kuweit.
(…)
Confirmam as nossas credenciais. “Está tudo bem. Só tem de esperar por um oficial.” Minutos depois aparece o tal oficial. Tem a cara escondida por um capuz preto. Conversa, por momentos, com outros soldados, até que alguém grita:
- Todos no chão!!!
Ninguém se mexe porque também ninguém está à espera desta súbita mudança de atitude.
- Todos no chão!!! – repete a mesma voz de trovão.
Só quando nos apontam as armas é que obedecemos e vamos para o chão.
- Cabeça no chão, mãos afastadas da cabeça e pernas abertas!!! Ninguém se mexe! Vocês estão na linha de fogo!
Um dos soldados aproxima-se e, com os pés, pontapeia-nos as mãos para que as afastemos ainda mais do resto do corpo. É incompreensível o que está a acontecer e reajo de imediato.
- Desculpem lá, mas isto é algum treino?
- Cala-te! A partir deste momento, vocês são considerados inimigos!
E para me mostrar que estão a falar a sério, aproximam-se ainda mais com as armas apontadas. Assim ficamos, com a cara encostada ao pó e incrédulos com o que está a acontecer. Revistam-nos e retiram tudo o que encontram nos nossos bolsos. Quinze minutos depois mandam-nos sentar, virados para um muro de terra, primeiro com as mãos na cabeça, depois permitindo que as baixemos, desde que estejam em local bem visível. Enquanto isso, despejam à bruta tudo o que está dentro do jipe. Câmaras, máquina de montagem e restante equipamento começam a voar porta fora.
Levanta-se nova tempestade de areia e assim ficamos, sentados e sem podermos falar uns com os outros. Uma hora depois, colocam o nosso jipe num buraco escavado pelas máquinas da engenharia do Exército ao qual chamam de bunker. É aqui que fazem explodir tudo o que consideram suspeito.
- Agora, vão ficar aqui dentro do jipe, até que os serviços de inteligência vos venham buscar. Querem interrogar-vos.
Um dos israelitas reage:
- Mas interrogar por quê e para quê?
- São considerados suspeitos.
- Mas suspeitos de quê?
- Podem ser terroristas ou espiões a tentar passar informações para o inimigo. Trazem câmaras, GPS e telefones satélites.
- E depois? Faz parte do nosso material de trabalho.
- Seja como for. Vão ter que ser interrogados!
- Por que motivo? Vocês próprios confirmaram as nossas identidades!
Entro na conversa:
- E vamos ficar aqui até quando?
- Talvez dois ou três dias.
- O quê? Aqui dentro do jipe?
- Sim. Não podem sair do bunker. Se o fizerem, os soldados têm ordens para disparar.
- Isto é, no mínimo, de doidos! Já agora, pelo menos, avisem as nossas empresas de que estamos vivos. Presos, mas vivos!
Escrevemos os contactos numa folha do meu bloco e passo-a ao soldado. Recebe-a, diz que não promete nada e afasta-se afirmando: “Se precisarem de alguma coisa peçam, mas também não temos que chegue para nós, por isso…”
E assim ficamos, os quatro dentro do jipe, impotentes perante estes comportamentos inesperados. Nas nossas vidas de repórteres, nas diversas guerras onde já estivemos, nenhum de nós passara por uma situação tão insólita quanto esta. Ao fim de algumas horas, tento dialogar com eles. Saio do jipe e voltam a apontar-me as armas. Aproximo-me lentamente. Não que me sinta um herói, mas não acredito que me dêem um tiro.
- Para trás!
- Só quero falar convosco.
- Para trás! Volta para o jipe ou disparamos!
- Acham que eu sou assim tão perigoso? Sabem que eu sou jornalista, não sabem? Querem disparar? Então, disparem!
Estão a uns cinquenta metros. Encho-me de coragem e volto a caminhar na direcção deles.
- Pára aí!!! Nem mais um passo!
- Posso saber se conseguiram avisar as nossas empresas?
- Não sabemos!
- Então, deixem-nos fazer um simples telefonema.
- Não! Volta para o jipe! Vocês estão incomunicáveis. Nós também estamos aqui há várias semanas sem podermos falar com as nossas famílias! Vocês não são diferentes!
- Ai isso é que somos! Talvez ainda não tenhas reparado mas tu és soldado, eu sou jornalista e o telefone é meu!
Um deles aproxima-se com o cano da arma apontado à altura da minha barriga. Tremo, mas não esmoreço.
- Ainda ontem, alguns soldados do outro acampamento ligaram para casa através do nosso telefone e agora nós não podemos fazer o mesmo? Podem confirmar pelos últimos números gravados na memória do telefone satélite.
- Já te dissemos que não! Acabou a conversa!
- Não é justo! Se vocês têm mulheres e filhos, tentem imaginar o que as nossas famílias estarão a passar…
Não chego a terminar a frase. Um dos soldados empurra-me pelas costas e caio desamparado com o peito no chão, seguindo-se um violento pontapé nas costelas. Sinto um pé no pescoço e outros dois que me pisam as mãos. Agarram-me as pernas e, com os joelhos nas minhas costas, puxam-me as mãos para trás, colocando-me de imediato umas algemas. O Vítor e os outros jornalistas saem do jipe e são imediatamente parados pelo apontar das armas dos restantes soldados da Polícia Militar. Arrastam-me uns bons duzentos metros para dentro do acampamento até me deixarem debaixo da traseira de um camião. E assim fico, mais de uma hora, algemado, dorido, cheio de frio e com uma arma sempre apontada a poucos metros da minha cabeça.
Estou revoltado, humilhado e cego de raiva. Perdido que estou, insulto o tipo que está ao pé de mim. Digo-lhe que esta atitude é típica de quem não respeita os outros; que só sabem matar; que é por estas e por outras que são cada vez mais odiados no mundo; que toda a vida fui pró-americano e que, depois disto, só quero é que todos eles morram neste deserto. Ele olha-me fixamente e pergunta:
- Por que é que estás a dizer isto?
- Ainda perguntas por quê? Olha para o meu estado! Vê o que me estás a fazer, mesmo sabendo que eu sou jornalista de um país vosso amigo. Põe-te no meu lugar. Nem um telefonema nos deixam fazer para a nossa família. Isso é forma de tratar alguém? Acusam o Saddam e depois fazem o mesmo ou ainda pior! É por isso que eu quero que se fodam os vossos ideais e as vossas tretas. Puta que vos pariu! Que morram todos nesta guerra!
Sinto que, depois do que lhe disse, no mínimo, vou levar uma coronhada ou mais uns pontapés. Mas não, feri o orgulho de uma nação que diz ter a liberdade por princípio, provocando-lhe uma reacção inversa.
- Vou tirar-te as algemas, mas aviso-te: se voltares a sair daquele jipe, levas a dobrar
Não reajo nem agradeço. E assim ficamos, durante dois dias e meio, dentro do jipe, sem chaves na ignição e, por isso mesmo, sem ar condicionado para o calor que faz durante o dia e para o frio que nos corta os ossos durante a noite. Falamos de coisas importantes, de banalidades e tentamos adivinhar o que irá na cabeça das nossas famílias. As necessidades são feitas dentro do mesmo buraco onde nos puseram e dar migalhas de pão seco às formigas e acompanhá-las até ao formigueiro, torna-se o nosso principal passatempo. Há que manter a cabeça limpa e ocupada com qualquer coisa.
Terceiro dia, início da tarde. Um tenente e um major aproximam-se. O menos graduado é quem fala.
- Estamos aqui para vos pedir desculpa pelo que aconteceu. Tentem compreender que os meus homens são treinados tal como são treinados os cães: só sabem atacar! Infelizmente temos ordens para vos expulsar para o Kuwait. A secreta militar quer interrogar-vos e visionar todas as vossas cassetes e rolos fotográficos.
Reclamamos, mas nada muda. Discretamente aponto o nome: “1st. LT Shaw Y. 527, mp, co”. É o tal do capuz preto.
O jipe ficou apreendido. Levam-nos, primeiro de camião para junto dos prisioneiros iraquianos, depois de helicóptero Chinuk para algures no norte do Kuwait. O nosso material foi empacotado em três caixotes, cheios de selos e de papéis anexados e, como se não bastasse tudo o que já nos fizeram passar nos últimos três dias, obrigam-nos a ficar acordados toda a noite, sentados, cada um numa cadeira e sem podermos falar uns com os outros, enquanto esperamos que cheguem os interrogadores da CIA. Estamos esgotados e o jornalista mais velho do grupo, com cinquenta e tal anos de idade, começa a discutir com os militares que nos guardam. Intervenho e evito que também ele seja agredido, justificando a irritação com tudo o que havíamos passado. Os oficiais ficam boquiabertos. O mais graduado levanta-se e sai da tenda para confirmar se somos mesmo jornalistas. Quando regressa, saca da faca que traz pendurada no cinturão e dirige-se ao fundo da tenda, onde estão os caixotes com os nossos equipamentos. Carrega-os para junto de nós e rasga-os de imediato, devolvendo-nos todo o material: “Toma lá a tua câmara, toma lá o teu telefone. As cassetes, a máquina de montagem, os cd´s, os telemóveis, GPS, mais uma câmara, mais uns binóculos...”Enquanto este tenente da Brigada 101 dos pára-quedistas nos dá o material, o major chama um soldado e ordena-lhe que me leve ao hospital de campanha. Felizmente são apenas hematomas provocados pelo pontapé. De regresso à tenda deparo-me com uma mesa preparada para tomarmos o pequeno-almoço. Quem diria que em poucos minutos tudo iria mudar. O major revela-nos que lhes fomos entregues como se fôssemos pessoas perigosas. Diz-nos também que já fez um relatório e que o caso agora ficará entregue a um general que se encarregará de abrir um inquérito. Enquanto bebo um copo de leite, abro o telefone satélite e ligo para a minha mulher. São três da manhã em Portugal, a Sílvia atende e desata a chorar quando ouve a minha voz do outro lado. Já me dava como morto. O major, que já tinha dado ao meu repórter de imagem um papel, onde, a título pessoal, nos pedia desculpa pelo sucedido, despede-se de nós com lágrimas nos olhos e dizendo que se depender dele, “os homens que vos fizeram isto, jamais voltarão a vestir a farda do exército dos Estados Unidos da América”. E para que nada nos volte a acontecer, levam-nos de volta até à cidade.
Transformo as imagens e as entrevistas que havíamos recuperado numa peça que faz a abertura do Telejornal e entro em directo para contar o que nos acontecera.