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Já não tomo banho há quatro dias. Não é novidade para mim. Em Angola, em 1999, passei dez dias até poder tomar um duche. Lá, no planalto central, era bem pior do que aqui, lutava-se de dia e de noite, constantemente. Foi a minha primeira experiência enquanto jornalista “embedded”, na altura enquadrado numa ofensiva das Forças Armadas Angolanas contra a UNITA.
Queremos sair daqui para editar as reportagens para a RTP e distribuir as imagens por todo o mundo. Não está a ser fácil, pois será necessário montar uma operação de “resgate” da linha da frente. Enquanto isso vamos montando a primeira “peça” e pergunto aos americanos se a posso enviar para Lisboa, embora com embargo até que me permitam a sua exibição. (Para quem não sabe, nestas situações é normal que os comandantes militares peçam para ver as reportagens antes delas serem exibidas. Não sei se já aqui falei, mas em 2003 um jornalista da FoxNews que acompanhava as tropas americanas no deserto e rumo a Bagdade, foi expulso depois de revelar pormenores do que iria acontecer e de fazer desenhos no chão, gravando-os para a câmara e revelando a posição onde se encontravam) O capitão pede que não o faça para já. Digo-lhe que é apenas para fazer um teste, mas na realidade vamos a enviá-la para Lisboa. Se houver censura, a reportagem já estará em Lisboa e depois logo se verá. O José Alberto Carvalho, Director de Informação e pivô de serviço, manda uma mensagem para o meu telemóvel: “Grande equipa! Para já só o cheiro é que chegou aqui… Manda lá a peça para abrirmos o Telejornal!!!” Já não deu. Os americanos não chegaram a tempo e eu não quis arranjar problemas ao capitão.
Duas da manhã e aparece uma coluna militar. São autênticas fortalezas rolantes. Fizeram mais de duas horas até chegar à nossa posição. Agora temos outro tanto para nos deslocarmos até outra base. Lá dentro, um dos soldados vai numa cadeira rotativa automática, protegido por uma rede, e com a visão nocturna vasculha tudo à nossa volta. Não descansa um minuto que seja. No vidro de uma das pequeníssimas janelas encontro a marca de um projéctil e entretenho-me a pensar como terá sido. Adormeço.
Chegámos a Tadji Camp. O major dá-nos as boas-vindas e pergunta-me se quero usar os equipamentos de que dispõem: “Podes mandar pelos nossos satélites para os Estados Unidos, depois é só a tua televisão ligar para lá que eles reenviam para Lisboa.” Agradeço e digo-lhe que temos um videofone. Se eu quiser permitem-me que entre em directo no telejornal e ninguém pede para ver a nossa reportagem. Ainda bem. O oficial mostra-nos onde podemos tomar um duche e leva-nos a almoçar na cantina americana. Foi a melhor refeição que fiz durante estas quase três semanas no Iraque.
O coronel quer falar connosco. É o comandante do Regimento de Cavalaria onde estão os rangers e os já famosos strikers. Foi ele quem deu a autorização para nós acompanharmos a ofensiva. Agradeço, falamos das nossas famílias, das saudades e da guerra. Conto-lhe o que se passou em 2003 e mostro-lhe o meu livro para que ele leia o que um major americano nos escreveu na altura, quando se deu conta do que nos estavam a fazer e me libertou: “I am sorry that you all had to endure such bad conditions, but remember that I care and pray you can forgive. (MSG. Anderson, 19th CMMC, Camp Udairi, Kuwait)”. O coronel pede para copiar a identificação do responsável pelo sucedido (1st. LT Shaw Y 527, mp, co.). “Ah, pois, Polícia Militar…”, diz-me. O comandante mostra-se muito interessado em saber se este homem ainda está no exército.
O sargento que foi colocado ao nosso dispor mostra-nos a parede onde estão expostas as fotografias dos soldados abatidos desde que chegaram. São vinte e sete em apenas sete meses, As últimas são as dos rangers que morreram durante os dias que estivemos lá à frente. Três, jovens ainda. Dois foram vítimas de sniper, o outro morreu numa explosão. “Só espero não ter que encher a parede”, desabafa. Já há três fileiras com os retratos dos camaradas perdidos em combate.
Os americanos não param de me surpreender. Vamos de helicóptero para a Green Zone e, na hora do embarque, dizem-me que não poderei voar de manga curta. Não percebo o porquê, mas também não há tempo para grandes perguntas. “Não tens um par de meias?”, pergunta um dos soldados. Nunca pensara nesta multifuncionalidade das meias. Sempre as vi apenas para os pés. Retiro as peúgas que usei durante os quatro dias e rasgo-as com os dentes… E mais não conto…
Amanhã há mais!
Abraço a todos.
Luís Castro