Quinta-feira, 24 de Abril de 2008

Massacre de al-Saydia

 

24 de Abril de 2003, nesse dia regressava a Lisboa vindo da guerra do Iraque.

Guardo as memórias daquele mês e meio como se tivesse sido ontem. E ainda hoje, nas aulas e em visitas a escolas e universidades, ou em conferências e palestras para as quais sou convidado, não me canso de repetir um episódio que me marcou para sempre: o massacre de Al-Syidia. Fiz entrevistas a chorar e por momentos deixei de ser jornalista.

Vou partilhar convosco o que aconteceu.

 

 

   A estrada que nos leva até Bagdade está repleta de gente que pilha tudo o que encontra. Já na capital, a primeira imagem que gravamos é a de um jovem que corre com dois imponentes cavalos acabados de roubar de um dos palácios do Saddam. A segunda é a do massacre de Saydia. Por sorte chegamos na mesma altura que a Al-Jazera e só nós e eles é que registamos essas imagens. Foi há dois dias, quando uma coluna de civis fugia dos combates. No caminho apareceu-lhes um militar americano levantando o punho fechado da mão direita. Como o primeiro carro não parou, os tanques e as metralhadoras abriram fogo, matando mais de sessenta pessoas. Não perceberam que aquele gesto significava parar. Procuro armas ou roupa militar, mas nada, eram mesmo civis. Se dúvidas houvesse, os pedaços de corpos espalhados pela estrada mostram claramente mulheres, crianças e alguns homens.

 

Os carros estão totalmente crivados de balas ou literalmente destroçados pelos tiros dos tanques. Um cenário que jamais esquecerei. Há pés, mãos, intestinos, cabeças e outros pedaços não identificados de corpos por todo o lado. Horrível. Mais ainda porque já é o segundo dia que estão expostos a um calor abrasador. Os moradores dos prédios vizinhos já enterraram alguns e é um que me relata o que aconteceu. Enquanto isso, desenterram uma mulher, três cabeças e um pé. Estão queimados e irreconhecíveis. Um dos populares puxa-me para que eu veja mais de perto. Aproximo-me agora de um grupo onde alguém levanta as mãos ao alto e chora.

   - Americanos? – pergunto.

   - Claro que foram os americanos! Há alguns minutos, um soldado veio pedir-nos desculpa. Pedem desculpa… Eu perdi dois irmãos e ele disse que está infeliz pelo que fizeram? Veja, o meu irmão só tinha vinte e oito anos! É esta a democracia da Europa e do Ocidente? Saddam é um criminoso? É, têm razão! E isto? Isto que está a ver neste local poderá voltar a ver mais à frente, a três quilómetros daqui.

 

   Vêm-me as lágrimas. O americano de quem este homem diz ter recebido o tal pedido de desculpas é um soldado de vinte e dois anos que veio da Califórnia. Foi o primeiro a disparar. Quando abandonamos o local, os americanos que assistiam a tudo debaixo de um viaduto começam a arrastar as carcaças retorcidas para fora da estrada. Ao mesmo tempo, mais uma coluna americana dá entrada na capital e os voluntários que, de bandeira branca nas mãos, retiram os mortos levantam os braços em sinal de submissão para que também eles não sejam confundidos com o inimigo.

 

Entro no jipe a pensar como é que ninguém ensinou a estes soldados que, por aqui, o sinal para mandar parar se faz virando a palma da mão para cima, juntando os cinco dedos e movimentando-os para cima e para baixo? Por que razão é que um iraquiano que foge da morte tem que saber que um punho fechado é o gesto militar para parar? Não se prepararam estudando a cultura e as tradições locais? Que comandantes são estes, mais os generais que estão no Pentágono? Então, não sabem que quando nos estamos a afundar, nem que seja o braço do nosso maior inimigo, é a ele que nos vamos agarrar? Não seria isso que esta gente tentava fazer: fugir para o lado dos mais fortes e aí encontrar segurança? Sinto-me cada vez mais revoltado.

 

 

Retirado do livro "Repórter de Guerra"

 

publicado por Luís Castro às 01:21
link do post
De alex a 24 de Abril de 2008
confesso-lhe luis que comentar estes ultimos posts é quase impossivel ...

não há forma de imaginar o k terá sido para si ver, ouvir, sentir, cheirar tudo akilo k vivenciou....

comoveu-me ao dizer k fez entrevistas a chorar, e se eskeceu de ser jornalista.... como não? é um ser humano em primeiro lugar.... ninguem nunca lhe poderia pedir outra coisa...

não tenho conhecimentos para entender pk guardamos umas imagens e não outras..... destas eu me lembro-me ... ia escrever infelizmente....mas não sei se o é

estavamos na altura ainda a pensar k talvez com a queda de saddam voltasse a paz...
axo k á altura mesmo kem não concordava com a invasão do iraque pelos USA muitos viam isso como um mal menor....

engano.... mas mesmo assim kdo passaram as imagens do massacre pensei k afinal j á não sabia nada... nunca soube .... sobre akele conflito....

eu vou mesmo fazer a pergunta k me esta na cabeça... como depois de ter presenciado este horror... depois de ter sido refem ... o luis diz k não foi esta a guerra k mais o marcou?

como conseguiu voltar depois?

já lhe disse uma vez e agora repito-o.... o luis é grande... muito grande!

um dia se kiser e puder conte-nos essas outras historias... serão horriveis como esta... mas kem sabe se não nos deixa mais alerta para outras situações de conflito...

já o conseguiu com o iraque .... faça ainda mais a diferença...

se tiver noticias do bassim não deixe de nos dizer... pode ser?

bjs grds luis
e se for caso disso um optimo fim de semana
alex
De Luís Castro a 25 de Abril de 2008
Alex,
sexta e fds semana será a trabalhar. Mas obrigado de qualquer das formas. Bom feriado e fds para si também.
Na verdade, o conflito do Iraque é mais mediático, mas as guerras em África não têm igual, principalmente o que aconteceu em Angola. No final da década de noventa e inícios desta, o mundo divorciara-se do que se passava no continente "negro".
Ainda esta noite estive a ouvir um amigo meu que trabalhou durante bastantes anos no Iraque antes da guerra. Havia ditadura, mas o Iraque era um país lindo e o povo vivia sem dificuldades.
Já aqui o disse: aprendi no Iraque que a segurança é mais importante do que a liberdade ou a democracia.
Estranho, não é?
Pois é. É porque nós, felizmente, nunca passámos por tal.
Bjs
LC
De alex a 25 de Abril de 2008
ora então já somos dois a trabalhar neste dia de sol... não são só as noticias que não param... os avioes tb não...
pelo menos o fim de semana está garantido... por enkuanto...

so agora li a sua resposta e aki no meu departamento a meio gas pelo dia k é .... mas mesmo
assim com várias pessoas lancei o debate sobre o k me disse

"aprendi no Iraque que a segurança é mais importante do que a liberdade ou a democracia.
Estranho, não é?"

é estranho é,... especialmente no dia de hoje 25 de abril...mas penso k mais estranho seria explicar á geração dos meus pais por exemplo!

com 35 anos, obviamente que não me lembro de viver doutra forma que não em democracia e liberdade

mas acredito isso sim que durante a nossa vida, a melhor e mais valida maneira de aprendizagem, é a experiencia e vivência de situações, k á partida nunca seker considerariamos

não consigo imaginar viver num pais em guerra, sem saber se no final do dia poderia como sempre ir ter a minha filha, ver o seu sorriso e saber k poderiamos sem pressa mas com segurança preparar o dia seguinte para as duas...ora aki está a segurança....

acredito em si... e no k vivenciou, e agradeço-lhe que partilhe essa forma de ver a vida aprendida da forma mais dificil...

... só mais uma nota... nós os fieis seguidores deste blog... comentando-o ou não somos, assumidamente viciados nele... o luis em resposta a um outro comentario diz que tb esta viciado em vir ver os comentários e responder-lhe....

é isso k o faz diferente...por mim agradeço todas, e cada uma das suas respostas...

apetece-me escrever uma frase feita aki aplicada ao seu blog.... "primeiro estranha-se depois entranha-se".... e de k maneira...

um optimo dia para si luis
bjs
alex
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Jornalista desde 1988
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- Colaborações em Rádio:
Voz da América
Voz da Alemanha
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Rádio Caracol (Colômbia)
Diversas - Brasil e na Argentina

- Colaborações Imprensa:
Expresso
Agência Lusa
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RTP:
Editor de Política, Economia e Internacional na RTP-Porto (2001/2002)
Coordenador do "Bom-Dia Portugal" (2002/2004)
Coordenador do "Telejornal" (2004/2008)
Editor Executivo de Informação (2008/2010)

Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
"Repórter de Guerra" - autor
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