Terça-feira, 8 de Julho de 2008

Reféns um ano na selva (1)

“Nunca deveriam ser sequestrados civis, nem mantidos prisioneiros os militares nas condições da selva. São actos cruéis. Nenhum propósito revolucionário pode justificar essas acções.”

Fidel Castro 

 

A libertação de Ingrid Betancourt trouxe-me à memória o que aconteceu em Cabinda, em 2001.  

Foram os últimos portugueses raptados no enclave angolano. Um ano de cativeiro na selva e quase esquecidos pelo seu país.

Estive na floresta do Maiombe, aprendi a linguagem do mato, andei com as duas guerrilhas e fui expulso de Angola.

Durante os próximos dias vou relatar o que lá vivi e que ficou registado no livro “Repórter de Guerra”, por mim lançado em Julho do ano passado.

  

*** CABINDA - PARTE 1***

“Você é da Inteligência!”   

 

Depois de passar por Luanda, sigo de avião para aquele pedaço de terra cravado entre os dois Congos, Aqui jorra o petróleo que financia mais de dois terços do orçamento do governo e que suporta a guerra com a UNITA. Instalados no único hotel que julgo existir na cidade, apenas sei que é pela Igreja que terei de começar. De resto, estou completamente às escuras. Não tenho um único contacto e os do passado perderam-se.

O taxista que nos levou do aeroporto para o Hotel Maiombe é o mesmo que agora me mostra a cidade. Vou fazendo perguntas.

   - Que casarão é este?

   - É o Seminário. É tipicamente colonial. Vem do tempo dos portugueses. Mora lá um tal Congo que dizem pertencer à FLEC.

   - Pára, pára. Como é que disseste que ele se chama?

   - Congo. Padre Congo.

   - Volta para trás! Vamos lá.

O espaço está cuidadosamente tratado e somos recebidos por um jovem de simpatia contagiante. Chama-se Puati e é o ajudante do Director do Seminário. Convida-nos a entrar e a esperar pelo padre, que foi rezar missa a uma aldeia do interior. Uma hora depois chega um Mercedes branco, velhinho, conduzido por um homem de pele bem escura, alto e com cara de poucos amigos. Começada a conversa, rapidamente percebemos que há um passado em comum: fomos os dois seminaristas na cidade do Porto e estudámos na mesma altura, embora em seminários diferentes: eu, nos Missionários da Consolata, ele, nos Salesianos. Fico com a certeza de que bati à porta certa e de que este será o contacto em que deverei investir daqui em diante. Quando nos despedimos, o padre Congo aconselha-nos a mudar para o Hotel Costa do Sol que fica a duzentos metros daqui. “É novo, é de um amigo meu e sempre estamos mais perto para ir falando.” Percebo a mensagem e ele promete ajudar no que puder.

  

Saímos do Maiombe para o Costa do Sol na manhã seguinte e o taxista que continua a acompanhar-nos garante-me que no outro estaremos bem mais seguros. Pergunto-lhe por quê e ele diz-me que há rumores de que haverá dois quartos que estarão sob escuta. Gelo quando me diz os números e dou conta de que são os dois onde acabáramos de passar a noite. Puxo a memória atrás para recordar os telefonemas e as conversas que tivera com o Artur Pacífico. Só fiz uma chamada e foi para a minha mulher, agora, quanto às conversas com o repórter de imagem que me acompanha, até fico arrepiado só de pensar que alguém as possa ter ouvido.

 

Na verdade, o Costa do Sol nada tem a ver com o Maiombe. Tem empregados muito simpáticos, o cozinheiro é português e o dono acaba por nos alugar um dos seus carros. Chamam-lhe o “Polaco” e, contrariamente ao que imaginava, não é polaco de nacionalidade. É preto e natural daqui. Há só um pequeno grande problema: o hotel é sociedade deste tal "Polaco" e do governador. Nesse mesmo dia confirmam-se os meus receios: o governador não gostou de nos ver por cá e recusa-se a receber-nos ou a dar qualquer entrevista. Não vamos ter vida fácil.

 

O segundo dia em Cabinda é passado com alguns portugueses que vivem ou trabalham nesta província angolana. O José Morgadinho é um deles e, para além dos negócios de venda de carros, é também o cônsul português. Insiste em alertar-me para os perigos que vou correr. Seja como for, diz que estará por perto para o que for necessário.

 

A amizade com o padre Congo vai-se aprofundando e passamos a conhecer o outro lado daquele que é considerado “A Voz da FLEC”. É no escritório dele que montamos a nossa redacção. O telefone fica pousado no braço do sofá e o fio da antena estende-se até uma cadeira onde está a parabólica, cuidadosamente apontada desde a varanda do seminário até um dos satélites disponíveis. Este será o nosso instrumento de trabalho mais importante, por isso o melhor será que ele não fique muito exposto aos olhares indiscretos de quem passa na rua. Se o confiscam, ficamos reduzidos a quase nada. Montada que está a logística, planifico a nossa missão em três frentes: primeiro, conhecer os representantes da resistência na cidade, que, de resto, já sabem da nossa presença; segundo, tentar a ligação para um número de satélite utilizado pelos guerrilheiros que estão no interior da mata; e, por último, contactar Paris, que é onde se encontra Nzita Tiago, chefe máximo da FLEC/FAC. Iniciados os passos para as duas primeiras, e ao fim de várias tentativas, acabo por chegar à fala com o líder histórico da resistência.

   - O que é que você está a fazer em Cabinda?

   - Vim para cobrir a situação dos três reféns portugueses por vocês raptados há dez meses e dos quais pouco ou nada se sabe.

   - Continuo a não perceber como é que chegou aí!

   - Fácil. Vim por Luanda.

   - Mas como é que chegou aí sem que ninguém soubesse?

   - Senhor presidente, aquando do rapto anterior tentei vir cá e não correu nada bem porque “alguém” soube. Desta vez, vim por mim, ou seja, em segredo total.

   - É isso que me deixa desconfiado. Sabe que tenho mais de vinte pedidos de autorização de colegas seus portugueses? Qualquer ida à mata tem que ser autorizada por mim. E você não fez qualquer pedido!

   - Estou a fazê-lo agora…

   - Isso não é assim!

   - Senhor presidente, insisto para…

   - Não vale a pena insistir. Eu sei que você está aí, não como jornalista, mas como ponta de lança do embaixador português no Zaire, do governo português e das Forças Armadas Angolanas.

   - Senhor Nzita, não sei se me ria ou se tome isso como um insulto!

   - Eu conheço-o como jornalista das guerras por onde tem andado, agora não sabia que também é da “inteligência”!

   - Desculpe lá, mas isso é um perfeito disparate. Fique sabendo que estou aqui de peito aberto, mas tal não significa que tenha vindo cá para vos fazer qualquer favor, o mesmo se passando em relação aos governos português e angolano. Vim para contar a verdade. Se quiserem assim, tudo bem, caso contrário volto para Portugal de mãos vazias e vocês perdem uma grande oportunidade de ouvir a vossa causa relembrada na imprensa portuguesa e, claro, por todo o mundo quando as imagens forem distribuídas pela RTP.

   - Temos outros jornalistas portugueses que são nossos amigos.

   - Não digo que não. Agora tanto quanto sei, eles estão lá e eu estou cá! Alguém veio, arriscando o que eu arrisquei?

   - Continua a não me convencer!

   - Vou-lhe provar que está errado.

   - Então se me quer provar o contrário, comece por fazer reportagens sobre os crimes dos soldados angolanos, sobre a pobreza que se vive aí em Cabinda e sobre a vontade de independência. Se fizer isto, talvez se arranje qualquer coisa.

   - Senhor Nzita, qualquer reportagem desse tipo seria o suficiente para me expulsarem de imediato e o senhor sabe-o. Posso adiantar-lhe que já recolhemos muitas imagens e imensas entrevistas sobre esses assuntos, mas essas peças serão as últimas a serem emitidas.

   - É assim ou nada!

   - Pois então é nada! Até porque não é o senhor que determina o critério editorial das minhas reportagens!

   - Você é que sabe. Vou desligar.

   A conversa acabara comigo a gritar com a pessoa que tem o poder de determinar se a nossa vinda será bem sucedida ou se terei que regressar à redacção com um enorme fracasso às costas. O padre Congo sossega-me a angústia.

   - O Nzita é assim. É um homem desfasado da realidade de Cabinda. Não se preocupe, tentarei falar com os outros maninhos.

   - Com quem?

   - Com os da outra FLEC, os da Renovada. Quando os da FLEC/FAC virem que vocês foram às bases da Renovada, aí serão eles a chamar-vos. É uma questão de lhes provocarmos ciúmes. Vai resultar.

 

Amanhã continua...

Luís Castro

 

 

É a segunda tentativa que faço para ir a Cabinda. Dois anos antes, durante a última crise de reféns portugueses no enclave, esteve preparado um “rapto”, a mim e ao meu operador de câmara. Os guerrilheiros viriam à cidade para nos levar para a mata e assim podermos despistar o exército angolano. O plano acabou por abortar por motivos aos quais fui alheio e que são ainda demasiado recentes para serem revelados. Assim, desta vez, vou sem que ninguém saiba, nem a própria FLEC.

publicado por Luís Castro às 00:41
link do post
De JAlves a 8 de Julho de 2008
Esse teu livro mostra bem a realidade de Cabinda e a mentalidade actual de Angola (sem generalizar). Vale a pena reler... e para quem lá viveu....epá!
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Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
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