***CABINDA - PARTE II***
Com os guerrilheiros da FLEC Renovada
Chegou a Cabinda o Lanzinha. Conheço-o de Lisboa. O português decide mudar-se para o nosso hotel e passamos a andar juntos. É um tipo superdivertido com sessenta anos mas com o espírito de trinta.
Consigo que o nosso número de telefone satélite chegue ao interior da floresta. Três dias depois, recebo um recado da FLEC Renovada onde se comprometem a contactar-nos quando lhes for possível e seguro. Estão muito receptivos à ideia de nos levarem para a mata, mas o meu entusiasmo vai arrefecendo há medida que o tempo passa. Já lá vão quase duas semanas e nada. Passo dias inteiros a olhar para o telefone, ora sentado no velho sofá, ora sentado no chão. Insisto em marcar os catorze dígitos do número do satélite deles de meia em meia hora, mas recebo sempre o mesmo sinal: o de desligado. Para grande incómodo do padre Congo, queimo três maços de cigarros por dia e o Artur, nada pacífico, já dá pontapés nas portas. Esta espera está a dar cabo de nós. O meu repórter de imagem quer ir-se embora. Peço-lhe que aguente mais uns dias e acaba abraçado a mim, com as lágrimas a rolarem-lhe pelo face até desaparecerem no meio da barba. Tenho um homem de cinquenta anos a chorar-me nos braços, o que demonstra o enorme desgaste psicológico desta espera. Nada me garante que vamos conseguir. Não fora o Lanzinha e teríamos quebrado. Ele é a força que já não temos. Certa noite, decide levar-nos a conhecer um grande amigo dele, o Cunha. É natural do enclave, já foi da FLEC e agora é o Administrador de Cabinda. Recebe-nos em casa e acabo por fazer mais um amigo por estas bandas. Conta-me tudo: as divergências do passado, as dificuldades do presente e aquilo que ele imagina que será o futuro. Fico com uma visão mais clara sobre a realidade do enclave.
Antes de sair de Portugal, informara-me, discretamente, sobre o comandante militar da região de Cabinda. Soube que o general Luís Mendes é um homem duro no combate, educado e fino no trato e com fortes ligações a Portugal; os filhos até estudam lá. Para minha surpresa, nem é preciso ir à procura dele, é ele que vem ao Costa do Sol para falar comigo. Convida-me para jantar no hotel. Percebo-lhe a intenção: pretende que eu seja visto com ele publicamente e assim queimar-me junto da FLEC. Se o fizer, lá se vai a confiança que a resistência começa a depositar
Um dos soldados abre o portão e encaminha-me para junto da piscina, onde está uma mesa preparada para duas pessoas. Segundos depois, desce o general, já à civil. Amável, como sempre, a conversa começa sobre as nossas vidas, sobre os filhos de cada um, sobre os percursos das nossas profissões, sobre as guerras que ele já fez e as que eu cobri. Inevitavelmente, a conversa vai parar à missão que me trouxe até aqui: chegar às duas FLEC e fazer reportagens com as duas facções da resistência. Diz que compreende, “é a tua missão.” Alerta-me, no entanto, para os perigos que vamos correr caso nos atrevamos a ultrapassar os cordões de segurança das Forças Armadas. “Podem confundir-vos!” Deixa bem claro que não é uma ameaça, apenas um aviso. Acredito na sinceridade dele, embora estejamos em papéis e em campos opostos. Eu tenho que chegar lá e ele tem por obrigação não me deixar passar. Ambos sabemos que será uma derrota para ele se eu conseguir contactar fisicamente qualquer uma das guerrilhas. Já à sobremesa, o general lança-me uma proposta para que cada um faça o seu trabalho sem entrarmos
É tal o estado de ansiedade, que não consigo dormir. A guerrilha marcou o ponto de encontro para as quatro da manhã, nos arredores da cidade de Cabinda. Preparado o material com todo o cuidado, saímos pelas traseiras do hotel a coberto da noite. Chegamos quinze minutos antes do tempo. Passam as quatro horas, as quatro e meia, as cinco, as cinco e meia e nada. Não sei se fui enganado ou se aconteceu algo de grave às pessoas que nos vinham buscar. Já nasceu o dia quando aparece o “contacto”. Diz que tiveram de se certificar de que não teríamos sido seguidos e de confirmar que da parte deles estaria tudo pronto. Entramos rapidamente no carro e viramos costas à cidade.
Uma das minhas preocupações tem sido a de não querer saber por onde nem para onde nos levam. Não me interessam os locais de passagem, as picadas ou quaisquer outras referências ao percurso que vamos fazer. É uma forma de lhes conquistar a confiança, caso contrário, demasiada curiosidade poderá levantar suspeitas desnecessárias e para a minha reportagem essas informações não são fundamentais. Seguimos numa pickup, passamos por algumas aldeias e por um quartel das FAA onde está um soldado a dormir na porta de armas. Dois quilómetros depois avisto um homem com camuflado diferente do das tropas do Governo e fortemente armado. O nosso contacto diz-me que “são eles”.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro