***CABINDA - PARTE V***
Na interior da floresta com a FLEC-FAC
Os portugueses que vivem em Cabinda dizem-se revoltados com o governo português. «O PS tem medo de enfrentar o problema! Se reparar, só raptam portugueses!» - A opinião é de Daniel Oliveira, há muitos anos aqui radicado. A filha Maria Albertina confirma-me que este último sequestro «mexeu muito com os portugueses. Estamos muito nervosos e preocupados.» Vou falando com Eduardo Saraiva e José Lello para saber se algo está a ser feito por estes desgraçados. O Eduardo é meu amigo e adjunto de Lello na Secretaria da Estado das Comunidades e critica-me por ter vindo para Cabinda.
- Estás a dar voz a terroristas que raptam portugueses e não ajudas em nada os reféns! Se fosse Director de Informação da RTP, tirava-te imediatamente daí!
- Pois, mas ainda bem que não és!
Por acaso tenho outra opinião: acho que o governo é o grande culpado de eles continuaram sequestrados lá na floresta e que pouco ou nada fez para que eles fossem libertados. Já lá vão onze meses e, ao que sei, um deles está muito doente. Percebo que não podem ceder a chantagens, mas onde andam os serviços secretos e os diplomatas para resolverem estes casos? Soube que um ministro pressionou a Direcção e a Administração para que me fizessem regressar a Lisboa mais cedo. Ainda bem que não o conseguiram. Ficaria aqui nem que fosse de férias.
A teoria do padre Congo confirmou-se: os rebeldes da FLEC-FAC ficaram com ciúmes ao saberem que a Renovada tinha saído da mata para ir quase à cidade só para estar connosco. Também nos vão receber. Pedem que aguardemos mais uns dias para prepararem a operação. Como a vigilância está a apertar, combinamos nomes de código para que não entendam as nossas conversas e para que não descubram os nossos planos. Assim, o Artur passa a “Bico bico”. Tudo porque sempre que quer desanuviar, à noite, recolhe-se do outro lado da estrada, junto a um charco, onde dezenas de rãs fazem um barulho ensurdecedor. Por incrível que pareça, e pela mistura dos sons, mais parece que dizem bico-bico, bico-bico durante horas a fio. O padre Congo é o “Jardel”, já que é o nosso ponta-de-lança. Quanto aos restantes portugueses, não que tenham algo a ver com a nossa missão, mas porque passamos muito tempo juntos, o Pedro foi baptizado como o “Malha
Saímos rumo à floresta de Maiombe. A cidade dorme e não há ninguém na rua. É a ala civil da resistência que nos vai levar até aos rebeldes da FAC. O ponto de contacto está marcado para uma zona habitualmente usada por madeireiros. Seguimos de jipe para o interior do enclave, entramos na floresta, percorremos picadas, atravessamos riachos e já estou perdido. Não faço a mínima ideia se viemos para Norte, se para Sul ou em qualquer outra direcção. Só sei que nos afastámos do mar e que esta floresta é de uma beleza indescritível. Ao fim de algumas horas, avisto grandes troncos de madeira tropical empilhados e prontos para serem carregados e exportados. Não aparece ninguém e começo a ficar desconfiado com tão prolongada demora. Tento telefonar para o número deles mas o nosso sinal bate na copa das árvores e não passa para o satélite.
- Vamos recuar, talvez não seja este o local.
A decisão do guia é bem recebida tanto por mim como pelo Artur.
Percorridos alguns quilómetros, o motorista trava de repente.
- Vi alguém.
- Militar ou civil?
- Não sei, só lhe vi a cabeça.
- Faz marcha atrás, rápido!
A cabeça lá está. Agora, há uma mão que sai também do meio da vegetação e que faz sinal para nos aproximarmos. Escondemos o carro e entramos no mato atrás daquele jovem que se mostrara à nossa passagem. Uns metros depois e aparece o primeiro guerrilheiro da FLEC-FAC. Cumprimenta-nos com um aperto de mão e acena com a cabeça para que o sigamos. Juntam-se mais dois e oferecem-se para carregar o nosso material. A vegetação é muito fechada. Não consigo ver para além de dois ou três metros à minha frente, o que faz com que tenhamos que andar
À frente seguem dois guerrilheiros com a arma pronta a disparar a qualquer momento. Têm cerca de sessenta anos e afastam a vegetação para podermos passar. É incrível a forma como andam, pisando as folhas secas praticamente sem fazerem ruído. Só as nossas botas parecem tocar o chão. À minha frente segue o único que vai vestido à civil e que transporta a mochila com algum do nosso equipamento. Depois, sigo eu com o telefone satélite, o Artur com a câmara sempre ligada e outros dois rebeldes fecham a pequena coluna. A vegetação continua muito fechada e quando abre junto ao solo fecha nas copas das árvores, fazendo ecoar os milhares de sons que se ouvem na floresta. Afinal, o Maiombe é ainda mais misterioso do que me tinham contado. A caminhada termina numa pequena clareira onde se reúne um grupo com cerca de trinta homens altamente armados. Um deles sai e vem ao nosso encontro. Traz os olhos muito arregalados. Nota-se que está ansioso. Aparenta menos de cinquenta anos, é alto e magro. O camuflado não está em mau estado e traz uma T-shirt também ela camuflada e que parece ter sido estreada para a ocasião. Carrega uma kalashnikov e vários carregadores no cinturão. «Da nossa parte, estamos muito agradecidos por terem chegado às terras de Cabinda e, sobretudo, por terem vindo às terras libertadas da FLEC-FAC. Chamo-me Estanislau Boma e sou o chefe do Estado-Maior da FLEC-FAC, que é liderada pelo senhor Nzita Tiago. Há bastante tempo que fomos sentindo a vossa preocupação de nos visitarem e o nosso pequeno silêncio e a pequena demora deveu-se ao facto de estarmos em guerra e de termos que controlar a situação no terreno para vos oferecer segurança.» Caminhamos para junto dos outros guerrilheiros, de maneira a que eles fiquem no enquadramento. Nem é preciso fazer perguntas para que o líder militar da guerrilha comece a debitar.
«Precisamos que o mundo saiba e que Portugal venha colocar-se no seu lugar, porque Portugal, sendo o país que veio assinar o tratado com os nossos velhos tradicionais, ao sair de Cabinda, devia ter deixado o direito aos cabindas. Mas os portugueses traíram o povo de Cabinda, dando Cabinda aos angolanos. Eles invadiram o território com ocupação militar e nós ficámos obrigados a fazer guerra aos angolanos durante vinte e seis anos. É uma guerra pela independência total e incondicional. Portugal deve assumir-se naquilo que ele sabe sobre Cabinda: voltar à sua administração, se for necessário, e retirar de Cabinda a presença angolana, para depois tratar directamente com os nacionalistas.» O líder da guerrilha despeja a cassete sem que me dar tempo para grandes perguntas.
- Qual é, neste momento, o estado de saúde dos três portugueses por vocês raptados?
- É normal.
- Até quando é que os vão manter sequestrados?
- Essa decisão depende do nosso presidente que está em contacto com o governo português.
- Mas como é que eles estão?
- Eles passam bem. Infelizmente, as nossas condições, sem ajuda exterior, fazem com que eles quebrem um pouco, mas são bem assistidos, porque devem gozar de uma protecção e segurança efectivas.
Terminada a entrevista, peço-lhe que nos permita ver os reféns. Diz que estão longe daqui. Insisto para que nos deixem ir com eles, mas Estanislau Boma mostra-me uma carta assinada por Nzita Tiago em que apenas lhe dá autorização para falar connosco e não para nos levar com eles para a base. «Têm que pedir ao Presidente.» Não vale a pena insistir. Ver os portugueses sequestrados está fora de hipótese, ir com eles também, resta-nos aproveitar o momento para fazer todas as perguntas possíveis e recolher o máximo de imagens, já que as últimas conseguidas datam de há mais de dez anos. Uma hora depois de os termos encontrado, eles voltam a desaparecer por entre a vegetação.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro