Segunda-feira, 29 de Setembro de 2008

Terra vermelha

Uma das coisas que me fascinam em África: poder olhar longe.

Por cá, sempre que se olha, há uma parede, uma porta, um prédio ou outra coisa qualquer à nossa frente que nos corta a profundidade.

Em Angola, como no resto do continente, conseguimos ver até à linha do horizonte.

E como gosto desta terra vermelha...

... e do cheiro quando chove.

Sinto que a minha alma se mistura com esta terra de barro vermelho.

 

O vermelho é a cor do sentimento, da paixão, do amor e do desejo.

Mas também da violência que os angolanos não querem mais; do poder de uma democracia que está a crescer e da agressividade contra os seus inimigos.

Esta terra vermelha, tal como o da bandeira do país, simboliza o sangue derramado pelos angolanos durante as lutas pela independência. 

Agora é sobre ela que se faz a reconstrução do país.

 

 

Luís Castro em Angola

publicado por Luís Castro às 12:00
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Sábado, 27 de Setembro de 2008

Quedas de Kalandula

E ainda há quem me pergunte o que tem Angola de tão especial!

 

As quedas de água de Kalandula, antigamente conhecidas por Duque de Bragança, são as maiores de Angola e as segundas maiores de África, depois  das quedas Victória, entre a Zâmbia e o Zimbabué.

 

As quedas Victória têm 1,7 km de comprimento e 108 metros de altura.

As quedas de Kalandula têm 410 metros de comprimento e 105 de altura.

Conseguem imaginar o som da água a cair desta altura?

Tal como as de Victória, aqui o “fumo” também trovoa!

 

Agora imaginem o que será no tempo das chuvas (Outubro/Abril) e quando forma um arco-íris na sua base.

 

O Fernando e o António lavam as motorizadas no cimo da cascata gigante.

 

Sérgio Ramos, o repórter de imagem da RTP, filma do miradouro.

 

A continuação do rio Lucala, um dos afluentes do rio Kwanza, o maior rio de Angola com mil quilómetros de comprimento.

 

 

Quedas de Kalandula

(80 km de Malange e 450 Km de Luanda)

Luís Castro

 

publicado por Luís Castro às 14:21
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Sexta-feira, 26 de Setembro de 2008

Mais de Malange...

Poema de José Manuel da Cruz Vaz Jacinto

 

Malange, minha Terra,

Malange, minha Vida,

Malange venceste a Guerra

Mas tua Palanca está ferida.

(…)

Malange já recupera

deitada no Planalto

e hoje cobre a sua terra

com paz, Brita e asfalto

(...)

Malanje das cinzas renascida,

Qual Fénix, ressuscitou

Do fogo, que a deu por vencida,

Mas foi Ela que o queimou.

(…)

Malange de da gente que lá ficou

porque não teve alternativa,

e na guerra morreu, sofreu… e amou,

lutou, venceu… a chama está Viva.

 

 

E por cá se recordam os ditos dos camaradas...

 

Malange foi palco de violentos combates que provocaram a fuga de milhares de pessoas.

 

O próximo post será com as maiores quedas de água de Angola...

Luís Castro em Malange

 

publicado por Luís Castro às 00:52
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Quarta-feira, 24 de Setembro de 2008

Malange e as Palancas Negras

É um dos mais belos antílopes africanos.

Só existe em Angola e em pequeno número.

A Palanca Negra é um símbolo nacional e pode ser visto na cauda dos aviões da TAAG e nas bandeiras das selecções do país.

Bem tentei encontrar uma, daria uma grande imagem, mas nada feito.

Pelo que me dizem, há muito que não são avistadas Palancas Negras.

 

Mas seguimos viagem, atravessando o interior de Angola até Malange.

E lá fui reencontrar um grande amigo do qual também falo no livro "Repórter de Guerra".

O Joca é um português nascido em Angola, que voltou à terra.

Juntos passámos grandes aventuras na Guiné-Bissau, agora o destino junta-nos em Malange.

E como quem tem amigos não morre só, os mecânicos do Joca passam seis horas de volta do nosso carro que se ressente dos mais de dois mil quilómetros já percorridos.

Enquanto arranjam o Touareg, vou para a cidade tirar fotografias para pôr no blogue:

Sede do MPLA no largo 4 de Fevereiro

Largo 4 de Fevereiro

Sede do Governo da Província de Malange

Buganvílias/bouganvillea/bougainvíllea que embelezam os jardins de Malange

Banco Nacional de Angola na Província

Catedral de Malange

 

Amanhã há mais de Malange.

Luís Castro

 

publicado por Luís Castro às 13:00
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Terça-feira, 23 de Setembro de 2008

No Interior de Angola

Saímos do Kuito, passámos Cunhinga, Andulo e chegamos a Calussinga. O polícia aponta-nos um caminho diferente daquele que nos haviam recomendado.

– E passa?

– Sim. O vosso carro é bom!

– De certeza?

– Eh… a estrada é um bocadinho malaika, mas vai vos levar lá!

O “lá” é a Quibala. Poupamos cento e cinquenta quilómetros, mas andamos mais de duzentos pelo meio de nada, apenas algumas aldeias com a bandeira da UNITA bem hasteada. Nunca conduzi numa picada assim. Foi uma experiência única.

Em Lanhore, um “pequeno-alto” (pequena paragem, em gíria militar) para comprar bananas.

Quando todos os outros fugiam da minha máquina fotográfica, o “motorizada” pede para tirar um retrato comigo…

Em troca tive de levar a família até à Quibala!

A Dª Eva (mãe), a Dª Mónica (tia) e dois “lambretazinhos” (filhos do motorizada)…

Daqui seguimos para Malange.

Mais 500 Km…

Só voltámos a parar para abastecer

900 km depois e catorze horas ao volante, chegámos finalmente a Malange!

 

Amanhã Continua

Luís Castro no interior de Angola

publicado por Luís Castro às 00:01
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Domingo, 21 de Setembro de 2008

Sons da Guerra (2ª parte)

Retirado do livro "Repórter de Guerra"

 

Não tenho dormido e a comida mal dá para os soldados, quanto mais para nós. Sinto-me fraco. Pelo que me dizem, a UNITA estará quase a ceder. Se assim for, amanhã teremos mais uma longa caminhada. Fecho os olhos mas a fome não me deixa dormir. Bebo um saco de whisky para adormecer o estômago e tento adivinhar o que os meus filhos estarão a fazer a esta hora. Já são dez da noite. Provavelmente estão a deitar-se. E eu aqui, no meio do mato. Em vez de lhes dar o beijo de boas-noites, estou no meio de um mundo que não devia sequer existir. À falta de sono, não conto carneirinhos mas conto os tiros e tento perceber de onde é que eles vêm.

Simeone simpatizou de tal forma comigo que até me mostra o mapa das operações com os locais onde estão as forças dos dois lados e o plano de operações para este último assalto. Diz-me que é o “tudo ou nada”, pois só nos restam doze quilómetros até ao Quartel-General de Savimbi.

Há alguns dias, durante um bombardeamento quase tão intenso quanto este, um dos comandantes começara a rir quando me viu atirar para o chão.

   - Não vale a pena. E sabe porquê?

   - Não. Não estou a entender…

   - É só fazer contas. Repare: a granada sai do cano a uma velocidade de seiscentos e setenta metros por segundo. Estão a vir tensos ou pingados?

   - Tensos.

   - Nós estamos a quantos metros deles?

   - Talvez uns trezentos, não mais.

   - Por isso, quando você se atira para o chão ele já caiu. Não dá tempo para a reacção.

   Na verdade, nunca imaginara tal. O tenente-coronel acompanhava a explicação com um desenho na terra.

   - Isto vai ajudá-lo a relacionar a saída com a queda. E sabe como é se for de noite?

   - Não.

   O militar assume um ar professoral.

   - Então, é assim: conte os segundos que separam a chama da saída do som correspondente que vem a seguir e multiplique-os por 340 (metros por segundo) que é a velocidade do som. Obtém, deste modo, a distância a que está a arma do inimigo. Fácil, não é?

De repente, uma rajada e outra e outra. Mau! A UNITA terá conseguido intrometer-se entre a infantaria e o comando. Alguém está a disparar sobre nós aqui bem perto. O Paquito é chamado para nos cobrir e dispara várias rajadas sobre o local de onde saiu aquele ataque inesperado. Paquito é o nome dado a um camião blindado onde está montada uma potente metralhadora que traça tudo o que lhe aparece na mira. Uma herança do tempo dos cubanos.

Vejo que há muitos feridos. Um deles tem a mão esfacelada, os dedos ao dependuro, os tendões traçados e, não tarda nada, esvai-se em sangue. Chamo um soldado que acaba por lhe fazer um garrote, colocando-lhe um pau e uma ligadura sobre a ferida. Percebo que a situação é crítica.

(…)

Digo aos restantes três do grupo que, por mim, já tenho muitas horas de imagens fantásticas e, como tal, quero editá-las e pô-las no ar o mais rapidamente possível e antes que percam actualidade. Está visto que das duas uma: ou a UNITA vai vencer, ou as posições vão ficar como estão até que as FAA se reorganizem e voltem a atacar, o que, a acontecer, irá demorar bastante tempo. Perante este cenário, o melhor é sairmos daqui hoje mesmo. Todos concordam que este é o momento para irmos embora.

Desta vez contei os quilómetros desde o local do último combate até ao Andulo.

É certo que estávamos já bem dentro do Município, mas faltavam ainda mais de vinte quilómetros e não dez como referi na altura da reportagem.

Nem que seja dez anos depois, a verdade tem de ser reposta.

Luís Castro

publicado por Luís Castro às 16:15
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Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008

Sons da Guerra (1ª parte)

Hoje e amanhã vou recordar o que aconteceu na “Ofensiva Andulo”, em 1999.

Depois voltarei a relatar a viagem pelo interior de Angola

 

Retirado do livro “Repórter de Guerra”

 

   - Quer experimentar?

   - Quem, eu?

   - Sim. É só puxar o fio.

   - Não, obrigado.

   - Fogo!

      Estou demasiado perto e o som da detonação estoura nos meus ouvidos. Um oficial aproxima-se e ensina-me que não devo tapar os ouvidos e manter a boca fechada. A onda de choque vai ter que sair por qualquer lado, por isso, a boca deve estar sempre aberta, independentemente de ter ou não os dedos indicativos a proteger os tímpanos. Espero pelo próximo tiro para testar o método.

   - Fogo!

   Abro a boca e... É isso mesmo. Já não senti aquela martelada na cabeça aquando do disparo. O próprio fio que eles usam é para que os soldados, depois de carregarem a granada e a carga propulsora, possam accionar a peça a uns vinte metros de distância.

   Disparam duas peças ao mesmo tempo. O impacto da saída foi a

dobrar. Sinto as entranhas a estremeceram e dá-me vontade de ir à casa de banho. Casa de banho.... um buraco, é o que é. Ali “desaguam” centenas de homens.

Aproximo-me de um dos camiões e oiço gritos.

   - Não atira, não atira!

   Olho à volta para tentar entender o que se passa e percebo que estão

todos a olhar para mim. Pois é… estúpido, pus-me mesmo atrás de uma BM. Se eles tivessem disparado, já estava esturricado.

   - Chefe, não pode estar aí!

   Envergonhado, volto para o pé do Cabina.

   - Mais seis!

Só saem cinco. Um dos comandantes reclama:

   - Seis, seis!

   - Atenção! Ali! Vai, vai!

   - Não! Sai! Vai lá! Vais morrer!

Risos.

   - Que se passa?

   - Há um filho da puta que está aqui a passar!

   Bem, eu tive um tratamento especial. Trataram-me por chefe...

- Vamos beber todos os dias um “che”. É fodido!

O Cabina não pára de rir e complementa:

   - É fodido, pá. Tá fodido!

Damos um salto. Saíram mais dois. O Luís Domingos, jornalista da TPA, cerra os

dentes e tapa os ouvidos.

Agora sou eu que me rio. Bato-lhe nas costas.

   - Calma, calma. Já tomaste o teu “che”?

     O Cabina não perde a boa disposição.

   - Vocês tomaram o “Che” e eu vou tomar o “Guevara”.

Desatamos os três a rir, menos o Júnior, o cameraman da televisão

angolana.

   - Vocês são malucos!

Ainda estamos em jejum e a manhã já está a acabar. A chuva, que abrandara durante a noite, volta agora ainda com mais intensidade. Um soldado aparece com quatro pratos de alumínio e outras tantas colheres. Lá dentro vem funge com lombi, ou seja, farinha de mandioca com folha de abóbora. Juntamos duas salsichas para cada um.

Se nos apanharem, a nós matam-nos logo porque somos pretos. A ti, porque és pula, vão dar-te tanta porrada! Nunca mais te deixarão sair. Vais apodrecer lá no mato!

Passo as mãos pela cabeça e saem pretas. O cabelo já se esqueceu do que é um pente; os dentes reclamam por uma escova; o sovaco cola e as cuecas já nem as sinto. Meto o dedo no nariz e sai negro. Procuro um espelho e encontro um retrovisor de um jipe. Olho-me e quase me assusto: cara surrada; olhos vermelhos e irritados de tanto pó; barba como nunca a tivera; o cabelo mais parece palha-d’aço e as orelhas estão ressequidas de tanto sol. Estou um farrapo e não sei quanto tempo mais vou ficar aqui. Passo o resto da tarde a jogar às cartas com o Cabina e com outros dois coronéis que chegaram nos últimos dias. Levaram uma tareia como nem a UNITA lhes tinha dado até aqui. Mandámos abaixo mais uma garrafa de whisky roubada ao coronel Mundo. O homem anda tão atarefado com a condução da batalha que, por isso mesmo, não deve beber!   

   Até aqui, o brigadeiro Simeone acompanhava a ofensiva no Kuito, mas todos sabemos que ele não é militar de secretária e não causa surpresa quando aparece de visita à linha da frente. Apanha-me a dormir debaixo de uma árvore.

   - Então, consegue dormir no meio dos tiros?

O Luís Domingos, que está por perto, responde por mim.

   - O pula tem sangue de água.

   O brigadeiro ri-se e segue à procura dos comandantes.

 

(Amanhã continua)

 

*Um forte e especial abraço para o Luís Domingos, o meu Kamba e irmão de armas que reencontrei em Luanda.

 

publicado por Luís Castro às 20:00
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Quinta-feira, 18 de Setembro de 2008

O meu "xará" da UNITA

Dez anos depois o mesmo BMP ainda lá está…

 

– António, o que te aconteceu à perna? –

– Foi na guerra… um estilhaço…

­­– O que fazias na guerra?

– Era soldado das Forças Armadas da UNITA.

– Não me digas… e em 1999, quando as FAA tentaram chegar ao Andulo, onde estavas?

­– Estava a combater na linha de frente.

– Sabes, António, eu estava do outro lado…

– Ehhh! Você?!

O António tem agora trinta e quatro anos e é recepcionista no único hotel que há no Kuito. Relembra o dia em que um pedaço de metal lhe trespassou a perna e tantos outros que passou debaixo de fogo. Era alferes da UNITA. E ali ficámos, os dois, sob o olhar curioso do Sérgio, a recordar o que foram aqueles combates que nós vivemos de lados opostos na linha da frente.

 

Na altura, se ele me tivesse apanhado, por certo que me mataria. Agora tem olhar e trato dóceis. Depois de lhe tirar a fotografia, a medo, pergunta:

– Não será perigoso para mim que o senhor mostre esse retrato?

– Não, António! Tu és um bom exemplo da reconciliação do país!

Despeço-me deste meu “antigo inimigo” com uma promessa:

­– Vou voltar e vamos os dois percorrer aquelas chanas e aquelas matas, está combinado?

– O senhor promete?

– António, meu "xará" (eu também sou António), promessas são dívidas!

Despedimo-nos com mais um abraço e de lágrimas nos olhos.

 

As crianças já não têm kalashnikovs nas mãos.

Estação do Kuito.

Aqui travaram-se alguns dos combates mais violentos da guerra em Angola.

Nestas matas morreram milhares de soldados.

A ligação entre o Kuito e o Andulo está igual ou pior do que há dez anos.

Muitas pontes já foram recuperadas.

Centro do Município do Andulo.

 

Luís Castro no Planalto Central

 

 

publicado por Luís Castro às 15:19
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Terça-feira, 16 de Setembro de 2008

Dez anos depois...

Há muito que esperava por este momento: voltar aos locais onde estive debaixo de fogo. Alguns (antigos combatentes do ultramar, por exemplo) saberão o quanto isto significa, outros nem tanto.

Recordo, para já, pequenas partes do que escrevi no livro “Repórter de Guerra” e que se reporta ao último combate travado entre o Kuito e o Andulo.

 

Todos sabemos que a qualquer momento as duas frentes vão chocar. Acontece por volta das três da tarde e, simultaneamente, a UNITA inicia aquele que será o bombardeamento de artilharia mais violento de toda a ofensiva. A primeira granada cai mesmo ao pé de nós. Mal lhe sentimos o assobio, cada um foge para seu lado. Eu dou uma cambalhota na direcção de um tanque. Levo comigo o telefone satélite, a mochila da tropa e uma outra sacola mais pequena com cassetes e baterias. O rebentamento despeja-me pedaços de terra e de capim. Sacudo a cabeça, olho para o lado e já não vejo o Cabina. Chamo-o e não me responde. Volto a gritar o nome dele e nada. A única resposta foi mais um rebentamento e mais uma chuva de terra. Estão com o tiro em cima da nossa posição. Rastejo até me esconder debaixo do carro de combate. É melhor ficar aqui mesmo.

(…)

Alguém me toca no ombro. É um soldado que veio a rastejar para me dizer que o meu colega está a uns cinquenta metros daqui, junto dos comandantes. Esperamos pelo próximo rebentamento e corremos, agachados e o mais depressa possível. Por sorte, nestes curtos segundos, só ouvi o zumbido dos projécteis disparadas do outro lado. O Cabina, comandantes, soldados e as peças de combate, escondem-se por detrás de um pequeno morro de terra.

(…)

   Tenho de pensar rapidamente em alguma coisa para entreter a

minha cabeça.  Não tarda nada desato a correr por aqui fora e só paro no Kuito. Tento, tento… e não consigo. No próximo tiro que vier do lado da UNITA, vou contar os segundos desde que se começa a ouvir o assobio até ele explodir. Já me avisaram que se deixar de ouvir o assobio é mau sinal: é porque me vai cair em cima. Aí vem mais um. Saiu… alguns segundos de espera e… o assobio começa a ouvir-se… um, dois, três…é cada vez mais forte… quatro, cinco, seis… ouve-se mais forte, mais forte e…sete, oito, nove... está muito próximo…dez… por um momento desaparece… meu Deus, será que… BUUUM!!! Não! Ainda não foi desta. Volto a suspirar fundo. Que alívio. É assim a cada tiro disparado pela UNITA.

(…)

   - UNITA! UNITA! UNITA! Vem UNITA! Vem UNITA!

    Será que estou a sonhar e isto não passa de um eco? A dúvida é rapidamente desfeita com os meus colegas a puxarem-me pelo camuflado. Parecem assustados. E estão assustados. Em pânico, diria mesmo.

   - Luís, vem aí a UNITA! Temos de fugir!!!

   Agarro nas duas mochilas e sigo atrás deles. Não sei para onde correm, apenas que estão a fugir para trás, que os soldados da UNITA estarão a poucos metros de nós e que a qualquer momento pode sair uma rajada e traçar-nos aqui mesmo. Felizmente, isso não acontece. Oiço muitos tiros mas, aparentemente, nenhum terá sido disparado sobre nós.

 

Dez anos depois, alguns dos carros de combate ainda lá estão.

Este é o “BMP2” que refiro no livro e cuja passagem passo a citar:

Algumas viaturas blindadas BMP são mandadas avançar para apoiarem a infantaria que está frente a frente com o inimigo. Uma passa por nós a toda a velocidade e não anda mais de cem metros até se ouvir uma tremenda explosão seguida de rebentamentos e de uma coluna negra que aparece do outro lado das árvores. Foi atingida. Outras duas BMP, que seguiam um pouco mais atrás, regressam à mesma velocidade com que haviam partido. As peças de artilharia disparam apenas com poucos segundos de intervalo. Estão todas direccionadas paralelamente ao solo e as da UNITA a menos de duzentos metros de nós. É incrível. Daqui para lá, sai todo o tipo de munições disponíveis, cada uma com o seu som característico. Do outro lado, fazem o mesmo. É o inferno ao vivo e eu poderei dizer que já lá estive. Só não sei se volto para contar.

 

José Cabina, o repórter de imagem que me acompanhou durante toda a ofensiva.

 

 

 

Amanhã vou contar a história do António.

Era soldado da UNITA e estava do outro lado.

 

Luís Castro no Kuito

 

publicado por Luís Castro às 20:15
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Domingo, 14 de Setembro de 2008

Cidade mártir

Como é possível? Será que ninguém se interessa? Aqui morre-se ao segundo e o mundo foi-se embora. O que estou a ver e a sentir devia corroer até à morte muitos dos nossos políticos e não estes pobres esqueletos que já não têm força sequer para afastar as moscas dos lábios e dos olhos.

 

E as crianças... há muito filho da puta que merecia uma morte assim, não estes inocentes! Ganho coragem e arranco um bebé dos braços de uma mãe moribunda. Entrego-o a um funcionário local de uma ONG internacional.

   - Não vê que esta mãe está a morrer e ao bebé também já não falta

muito?

   O Homem aconchega o bebé nos braços e responde-me:

   - Senhor, são centenas nas mesmas condições. Não podemos acudir a todos ao mesmo tempo. Também não há leite nem medicamentos.

   Sinto-lhe a frustração. Terá a minha idade, pouco mais de trinta anos, mas vivemos em mundos diferentes. Agora, vejo como se morre «ao vivo». Estou arrepiado e a temperatura do ar deve rondar os trinta e oito graus. O suor gela à saída dos poros.

 

 

Mais tarde, já em Luanda, quando acabar de editar a reportagem, ficarei com a sensação de não ter conseguido mostrar a real dimensão da tragédia que se abatera sobre aqueles campos de refugiados, nos arredores da capital da província do Bié. Trezentas mil pessoas à espera da morte. O inferno é aqui mesmo.

 

Retirado do livro "Repórter de Guerra"

 

Dez anos depois, regresso ao Kuito, a cidade mártir.

Os vestígios da guerra ainda estão presentes.

Não havia um palmo de parede sem o buraco de uma bala.

Há poucos anos, o Kuito era todo assim.

Do outro lado da rua, nota-se a mudança.

Avenida central da cidade do Kuito.

Com 1.200 Km já percorridos, não há carro que resista...

 

Luís Castro no Kuito

 

publicado por Luís Castro às 23:27
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Perfil

Jornalista desde 1988
- 8 anos em Rádio:
Rádio Lajes (Açores)
Rádio Nova (Porto)
Rádio Renascença
RDP/Antena 1

- Colaborações em Rádio:
Voz da América
Voz da Alemanha
BBC Rádio
Rádio Caracol (Colômbia)
Diversas - Brasil e na Argentina

- Colaborações Imprensa:
Expresso
Agência Lusa
Revistas diversas
Artigos de Opinião

RTP:
Editor de Política, Economia e Internacional na RTP-Porto (2001/2002)
Coordenador do "Bom-Dia Portugal" (2002/2004)
Coordenador do "Telejornal" (2004/2008)
Editor Executivo de Informação (2008/2010)

Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
"Repórter de Guerra" - autor
"Por que Adoptámos Maddie" - autor
"Curtas Letragens" - co-autor
"Os Dias de Bagdade" - colaboração
"Sonhos Que o Vento Levou" - colaboração
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