«A bolanha abre-se, despida, enorme sem abrigo. Os páras conhecem o perigo, mas Guidage espera cercada. Avançam, chega a emboscada. Chovem morteiradas e canhoadas, RPGs cruzam os ares, dantesco fogo de artifício...»
Discurso do general Hugo Borges, comandante de pelotão - na altura um jovem tenente - que esteve na emboscada que custou a vida aos três soldados pára-quedistas junto a Guidage, Norte da Guiné, no dia 23 de Maio de 1973.
Finalmente, trinta e cinco anos depois, três soldados pára-quedistas descansam em paz.
Outros ainda não voltaram.
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Retirado do livro "Repórter de Guerra"
(antes de ter sido preso e interrogado na Guiné-Bissau, em 1998)
Passamos por algumas barreiras militares, ainda dentro da cidade, e o Hamed indica uma picada que nos levará até um braço de mar. Lá, duas pirogas fazem a ligação entre as margens. O pior é chegar até elas. Com a maré vazia ficam ainda uns trinta metros de lama por onde vamos ter que passar. O nosso amigo muçulmano vai à frente. Descalço, mete o primeiro pé e enterra-se até ao tornozelo. Mais alguns passos e já tem a lama a meio da coxa. Um guineense oferece-se para nos levar as mochilas. A câmara vai ao ombro do Hélder e eu começo a perceber a técnica: quando dou um passo, tenho de levantar o outro pé para fora da lama e voltar a enterrá-lo até encontrar lá no fundo as raízes das pequenas árvores que cobrem a margem. Dói que se farta. Mais um passo, o pé vem de trás, custa a sair, o joelho sobe ao nível do peito, estico a perna ao nível do tronco e enterro-a de novo até sentir que encontrei outra raiz com a planta do pé. O Hélder vem a seguir, falha a raiz, suja os calções e solta uns impropérios. Os condutores das pirogas riem-se com o esgar de dor que fazemos em cada passo que damos. Vinte minutos depois e a piroga está ao alcance do braço, mas já não há força para subir. Somos puxados e passamos a partilhar a embarcação com um casal de refugiados e dois porcos que não param de guinchar. Acabada a travessia, de novo a lama até pisar terra firme e mais uns cem metros descalços para alcançar um pequeno charco. É dificílimo tirar das pernas esta lama cinzenta, viscosa e peganhenta. Mas o calvário ainda agora começou. Segue-se uma longa caminhada pelo mato. Desconfiado, pergunto ao Hamed se não se enganou no caminho. Sempre a rir, abana a cabeça: “Alá sofreu muito mais”.
Está um calor insuportável e esgotamos a água. No trilho, a vegetação é densa e cobre a altura de um homem. Numa das muitas paragens, entretenho-me a imaginar o que terá sido a Guerra Colonial. Como é fácil emboscar, matar e fugir. Na Guiné, travou-se a guerra mais violenta de todas as colónias. Será que os guerrilheiros continuam duros de vergar?
(...)
A RTP distribui, diariamente, as nossas imagens para todo o mundo através da Eurovisão. A primeira imagem de Ansumane Mané – no caso, a fotografia – foi um sucesso. O embaixador manda-me um recado: quer falar comigo para saber o que se passa do outro lado e sobre o que os rebeldes pensam de Portugal. Como exemplo, conto-lhe a conversa que um guerrilheiro quisera ter comigo, nessa manhã:
- O que é que se passa com o vosso governo? Como deixaram o Nino fazer tantas asneiras?
- Portugal nada podia fazer. Vocês são independentes. Este foi o destino que escolheram.
Após alguns segundos em silêncio, pede-me um cigarro e começa a contar a vida dele.
- Sabes, fui guerrilheiro. Lutei e matei muitos portugueses, nem eu sei quantos. Agora sou velho e tenho a certeza que tu e eu somos irmãos. Acredita, queremos que vocês voltem rapidamente para a Guiné.
- É impossível!
A minha resposta saíra com um sorriso à mistura.
- Estás a rir da nossa miséria?
- Não, claro que não! Só te estou a dizer que o país é vosso.
- É! Pois é! Só que não o sabemos governar.
O velho guerrilheiro falara-me com a maior das convicções e o modo
como recordara o passado que ele próprio combatera é a imagem do carinho que os Guineenses continuam a sentir pelo antigo colonizador. O embaixador está na Guiné já há algum tempo e, por isso mesmo, sabe muito bem que pisamos o risco. Pede-me apenas para ter cuidado porque as nossas reportagens estão a ser incómodas. Agradeço a atenção e trocamos números de telefone.
Luís Castro