Hoje e amanhã vou recordar o que aconteceu na “Ofensiva Andulo”, em 1999.
Depois voltarei a relatar a viagem pelo interior de Angola
Retirado do livro “Repórter de Guerra”
- Quer experimentar?
- Quem, eu?
- Sim. É só puxar o fio.
- Não, obrigado.
- Fogo!
Estou demasiado perto e o som da detonação estoura nos meus ouvidos. Um oficial aproxima-se e ensina-me que não devo tapar os ouvidos e manter a boca fechada. A onda de choque vai ter que sair por qualquer lado, por isso, a boca deve estar sempre aberta, independentemente de ter ou não os dedos indicativos a proteger os tímpanos. Espero pelo próximo tiro para testar o método.
- Fogo!
Abro a boca e... É isso mesmo. Já não senti aquela martelada na cabeça aquando do disparo. O próprio fio que eles usam é para que os soldados, depois de carregarem a granada e a carga propulsora, possam accionar a peça a uns vinte metros de distância.
Disparam duas peças ao mesmo tempo. O impacto da saída foi a
dobrar. Sinto as entranhas a estremeceram e dá-me vontade de ir à casa de banho. Casa de banho.... um buraco, é o que é. Ali “desaguam” centenas de homens.
Aproximo-me de um dos camiões e oiço gritos.
- Não atira, não atira!
Olho à volta para tentar entender o que se passa e percebo que estão
todos a olhar para mim. Pois é… estúpido, pus-me mesmo atrás de uma BM. Se eles tivessem disparado, já estava esturricado.
- Chefe, não pode estar aí!
Envergonhado, volto para o pé do Cabina.
- Mais seis!
Só saem cinco. Um dos comandantes reclama:
- Seis, seis!
- Atenção! Ali! Vai, vai!
- Não! Sai! Vai lá! Vais morrer!
Risos.
- Que se passa?
- Há um filho da puta que está aqui a passar!
Bem, eu tive um tratamento especial. Trataram-me por chefe...
- Vamos beber todos os dias um “che”. É fodido!
O Cabina não pára de rir e complementa:
- É fodido, pá. Tá fodido!
Damos um salto. Saíram mais dois. O Luís Domingos, jornalista da TPA, cerra os
dentes e tapa os ouvidos.
Agora sou eu que me rio. Bato-lhe nas costas.
- Calma, calma. Já tomaste o teu “che”?
O Cabina não perde a boa disposição.
- Vocês tomaram o “Che” e eu vou tomar o “Guevara”.
Desatamos os três a rir, menos o Júnior, o cameraman da televisão
angolana.
- Vocês são malucos!
Ainda estamos em jejum e a manhã já está a acabar. A chuva, que abrandara durante a noite, volta agora ainda com mais intensidade. Um soldado aparece com quatro pratos de alumínio e outras tantas colheres. Lá dentro vem funge com lombi, ou seja, farinha de mandioca com folha de abóbora. Juntamos duas salsichas para cada um.
Se nos apanharem, a nós matam-nos logo porque somos pretos. A ti, porque és pula, vão dar-te tanta porrada! Nunca mais te deixarão sair. Vais apodrecer lá no mato!
Passo as mãos pela cabeça e saem pretas. O cabelo já se esqueceu do que é um pente; os dentes reclamam por uma escova; o sovaco cola e as cuecas já nem as sinto. Meto o dedo no nariz e sai negro. Procuro um espelho e encontro um retrovisor de um jipe. Olho-me e quase me assusto: cara surrada; olhos vermelhos e irritados de tanto pó; barba como nunca a tivera; o cabelo mais parece palha-d’aço e as orelhas estão ressequidas de tanto sol. Estou um farrapo e não sei quanto tempo mais vou ficar aqui. Passo o resto da tarde a jogar às cartas com o Cabina e com outros dois coronéis que chegaram nos últimos dias. Levaram uma tareia como nem a UNITA lhes tinha dado até aqui. Mandámos abaixo mais uma garrafa de whisky roubada ao coronel Mundo. O homem anda tão atarefado com a condução da batalha que, por isso mesmo, não deve beber!
Até aqui, o brigadeiro Simeone acompanhava a ofensiva no Kuito, mas todos sabemos que ele não é militar de secretária e não causa surpresa quando aparece de visita à linha da frente. Apanha-me a dormir debaixo de uma árvore.
- Então, consegue dormir no meio dos tiros?
O Luís Domingos, que está por perto, responde por mim.
- O pula tem sangue de água.
O brigadeiro ri-se e segue à procura dos comandantes.
(Amanhã continua)
*Um forte e especial abraço para o Luís Domingos, o meu Kamba e irmão de armas que reencontrei em Luanda.