Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008

Sons da Guerra (1ª parte)

Hoje e amanhã vou recordar o que aconteceu na “Ofensiva Andulo”, em 1999.

Depois voltarei a relatar a viagem pelo interior de Angola

 

Retirado do livro “Repórter de Guerra”

 

   - Quer experimentar?

   - Quem, eu?

   - Sim. É só puxar o fio.

   - Não, obrigado.

   - Fogo!

      Estou demasiado perto e o som da detonação estoura nos meus ouvidos. Um oficial aproxima-se e ensina-me que não devo tapar os ouvidos e manter a boca fechada. A onda de choque vai ter que sair por qualquer lado, por isso, a boca deve estar sempre aberta, independentemente de ter ou não os dedos indicativos a proteger os tímpanos. Espero pelo próximo tiro para testar o método.

   - Fogo!

   Abro a boca e... É isso mesmo. Já não senti aquela martelada na cabeça aquando do disparo. O próprio fio que eles usam é para que os soldados, depois de carregarem a granada e a carga propulsora, possam accionar a peça a uns vinte metros de distância.

   Disparam duas peças ao mesmo tempo. O impacto da saída foi a

dobrar. Sinto as entranhas a estremeceram e dá-me vontade de ir à casa de banho. Casa de banho.... um buraco, é o que é. Ali “desaguam” centenas de homens.

Aproximo-me de um dos camiões e oiço gritos.

   - Não atira, não atira!

   Olho à volta para tentar entender o que se passa e percebo que estão

todos a olhar para mim. Pois é… estúpido, pus-me mesmo atrás de uma BM. Se eles tivessem disparado, já estava esturricado.

   - Chefe, não pode estar aí!

   Envergonhado, volto para o pé do Cabina.

   - Mais seis!

Só saem cinco. Um dos comandantes reclama:

   - Seis, seis!

   - Atenção! Ali! Vai, vai!

   - Não! Sai! Vai lá! Vais morrer!

Risos.

   - Que se passa?

   - Há um filho da puta que está aqui a passar!

   Bem, eu tive um tratamento especial. Trataram-me por chefe...

- Vamos beber todos os dias um “che”. É fodido!

O Cabina não pára de rir e complementa:

   - É fodido, pá. Tá fodido!

Damos um salto. Saíram mais dois. O Luís Domingos, jornalista da TPA, cerra os

dentes e tapa os ouvidos.

Agora sou eu que me rio. Bato-lhe nas costas.

   - Calma, calma. Já tomaste o teu “che”?

     O Cabina não perde a boa disposição.

   - Vocês tomaram o “Che” e eu vou tomar o “Guevara”.

Desatamos os três a rir, menos o Júnior, o cameraman da televisão

angolana.

   - Vocês são malucos!

Ainda estamos em jejum e a manhã já está a acabar. A chuva, que abrandara durante a noite, volta agora ainda com mais intensidade. Um soldado aparece com quatro pratos de alumínio e outras tantas colheres. Lá dentro vem funge com lombi, ou seja, farinha de mandioca com folha de abóbora. Juntamos duas salsichas para cada um.

Se nos apanharem, a nós matam-nos logo porque somos pretos. A ti, porque és pula, vão dar-te tanta porrada! Nunca mais te deixarão sair. Vais apodrecer lá no mato!

Passo as mãos pela cabeça e saem pretas. O cabelo já se esqueceu do que é um pente; os dentes reclamam por uma escova; o sovaco cola e as cuecas já nem as sinto. Meto o dedo no nariz e sai negro. Procuro um espelho e encontro um retrovisor de um jipe. Olho-me e quase me assusto: cara surrada; olhos vermelhos e irritados de tanto pó; barba como nunca a tivera; o cabelo mais parece palha-d’aço e as orelhas estão ressequidas de tanto sol. Estou um farrapo e não sei quanto tempo mais vou ficar aqui. Passo o resto da tarde a jogar às cartas com o Cabina e com outros dois coronéis que chegaram nos últimos dias. Levaram uma tareia como nem a UNITA lhes tinha dado até aqui. Mandámos abaixo mais uma garrafa de whisky roubada ao coronel Mundo. O homem anda tão atarefado com a condução da batalha que, por isso mesmo, não deve beber!   

   Até aqui, o brigadeiro Simeone acompanhava a ofensiva no Kuito, mas todos sabemos que ele não é militar de secretária e não causa surpresa quando aparece de visita à linha da frente. Apanha-me a dormir debaixo de uma árvore.

   - Então, consegue dormir no meio dos tiros?

O Luís Domingos, que está por perto, responde por mim.

   - O pula tem sangue de água.

   O brigadeiro ri-se e segue à procura dos comandantes.

 

(Amanhã continua)

 

*Um forte e especial abraço para o Luís Domingos, o meu Kamba e irmão de armas que reencontrei em Luanda.

 

publicado por Luís Castro às 20:00
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34 comentários:
De Caldeira a 20 de Setembro de 2008
Já em Valongo? Ainda não tenho o livro, mas já me emociono com o Blog, se o não conseguir vou pedir a minha filha para o comprar ai, ja agora procura e lê a PURGA, conscidência grande, muitos de meus amigos e camaradas terem te conhecido e serem teus amigos e nós não termos conseguido estar juntos...(oiço histórias que de certeza não relatas no livro). Um abraço, estamos juntos...
De Luís Castro a 20 de Setembro de 2008
Caldeira,
a Purga ?!
Não percebi.
E temos muitos amigos em comum, é?
E que histórias... rs...rs...rs...
Fiquei curioso...
Ab.
LC
De Caldeira a 21 de Setembro de 2008
Hehehe tens materia para mais um livro, hehehehe um abraço do Nguto, te ligo e falamos, a Purga e um livro publicado ai e ainda proibido (aqui)
De Luís Castro a 21 de Setembro de 2008
Já sei...
Quanto ao "Repórter de Guerra III", quando tiver mais material.
Ab.
LC

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Perfil

Jornalista desde 1988
- 8 anos em Rádio:
Rádio Lajes (Açores)
Rádio Nova (Porto)
Rádio Renascença
RDP/Antena 1

- Colaborações em Rádio:
Voz da América
Voz da Alemanha
BBC Rádio
Rádio Caracol (Colômbia)
Diversas - Brasil e na Argentina

- Colaborações Imprensa:
Expresso
Agência Lusa
Revistas diversas
Artigos de Opinião

RTP:
Editor de Política, Economia e Internacional na RTP-Porto (2001/2002)
Coordenador do "Bom-Dia Portugal" (2002/2004)
Coordenador do "Telejornal" (2004/2008)
Editor Executivo de Informação (2008/2010)

Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
"Repórter de Guerra" - autor
"Por que Adoptámos Maddie" - autor
"Curtas Letragens" - co-autor
"Os Dias de Bagdade" - colaboração
"Sonhos Que o Vento Levou" - colaboração
"10 Anos de Microcrédito" - colaboração

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