Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Não tenho dormido e a comida mal dá para os soldados, quanto mais para nós. Sinto-me fraco. Pelo que me dizem, a UNITA estará quase a ceder. Se assim for, amanhã teremos mais uma longa caminhada. Fecho os olhos mas a fome não me deixa dormir. Bebo um saco de whisky para adormecer o estômago e tento adivinhar o que os meus filhos estarão a fazer a esta hora. Já são dez da noite. Provavelmente estão a deitar-se. E eu aqui, no meio do mato. Em vez de lhes dar o beijo de boas-noites, estou no meio de um mundo que não devia sequer existir. À falta de sono, não conto carneirinhos mas conto os tiros e tento perceber de onde é que eles vêm.

Simeone simpatizou de tal forma comigo que até me mostra o mapa das operações com os locais onde estão as forças dos dois lados e o plano de operações para este último assalto. Diz-me que é o “tudo ou nada”, pois só nos restam doze quilómetros até ao Quartel-General de Savimbi.

Há alguns dias, durante um bombardeamento quase tão intenso quanto este, um dos comandantes começara a rir quando me viu atirar para o chão.
- Não vale a pena. E sabe porquê?
- Não. Não estou a entender…
- É só fazer contas. Repare: a granada sai do cano a uma velocidade de seiscentos e setenta metros por segundo. Estão a vir tensos ou pingados?
- Tensos.
- Nós estamos a quantos metros deles?
- Talvez uns trezentos, não mais.
- Por isso, quando você se atira para o chão ele já caiu. Não dá tempo para a reacção.
Na verdade, nunca imaginara tal. O tenente-coronel acompanhava a explicação com um desenho na terra.
- Isto vai ajudá-lo a relacionar a saída com a queda. E sabe como é se for de noite?
- Não.
O militar assume um ar professoral.
- Então, é assim: conte os segundos que separam a chama da saída do som correspondente que vem a seguir e multiplique-os por 340 (metros por segundo) que é a velocidade do som. Obtém, deste modo, a distância a que está a arma do inimigo. Fácil, não é?

De repente, uma rajada e outra e outra. Mau! A UNITA terá conseguido intrometer-se entre a infantaria e o comando. Alguém está a disparar sobre nós aqui bem perto. O Paquito é chamado para nos cobrir e dispara várias rajadas sobre o local de onde saiu aquele ataque inesperado. Paquito é o nome dado a um camião blindado onde está montada uma potente metralhadora que traça tudo o que lhe aparece na mira. Uma herança do tempo dos cubanos.

Vejo que há muitos feridos. Um deles tem a mão esfacelada, os dedos ao dependuro, os tendões traçados e, não tarda nada, esvai-se em sangue. Chamo um soldado que acaba por lhe fazer um garrote, colocando-lhe um pau e uma ligadura sobre a ferida. Percebo que a situação é crítica.
(…)
Digo aos restantes três do grupo que, por mim, já tenho muitas horas de imagens fantásticas e, como tal, quero editá-las e pô-las no ar o mais rapidamente possível e antes que percam actualidade. Está visto que das duas uma: ou a UNITA vai vencer, ou as posições vão ficar como estão até que as FAA se reorganizem e voltem a atacar, o que, a acontecer, irá demorar bastante tempo. Perante este cenário, o melhor é sairmos daqui hoje mesmo. Todos concordam que este é o momento para irmos embora.

Desta vez contei os quilómetros desde o local do último combate até ao Andulo.
É certo que estávamos já bem dentro do Município, mas faltavam ainda mais de vinte quilómetros e não dez como referi na altura da reportagem.
Nem que seja dez anos depois, a verdade tem de ser reposta.
Luís Castro
De filipa Jardim a 21 de Setembro de 2008
Luis,
Muito intressante este intercalar do presente e do passado.Um registo em dois tempos nesta sua viagem a Angola, que nos permite entender melhor a sua mensagem actual.
Bjs,
Filipa
Filipa,
o presente tem de ter contexto!
Anda por aí muita gente que não tem memória, ou a queira esconder...
Percebeu a mensagem: quero lembrar a quem já se esqueceu e ensinar a quem não sabe.
Só assim se percebe a importância do que está a acontecer em Angola, mesmo que para alguns seja ainda pouco.
Bjs
LC
De milhafre a 21 de Setembro de 2008
É curioso o que dizes sobre o teu livro...
"Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. É meramente factual. O que aqui está, aconteceu. Mesmo. Sou contra as fantasias."
Cá por mim só sei que nada sei. E, talvez por isso (e porque a vida é curta), leia mais ensaios, livros de não ficção, jornais, revistas...
O mais arrepiante e frustrante é que, findas algumas narrativas, gostaria de poder fazer o reset ou mesmo o delete às mesmas... Pela crueza dos factos, entenda-se.
Dou-te um exemplo: "A Odisseia de Enrique", de Sonia Nazario. Editora Guerra e Paz. Um livro sobre a travessia de fronteiras... Aposto que vais gostar.
Se não se trata de um autêntico cenário de guerra, então explica-me o que é?
Bjs.
Milhafre,
não conheço esse livro.,
Vou tentar saber de que se trata.
Quanto ao meu,
sim, é meramente factual.
Sabes, em televisão é muito fácil enganar,
Sobre o que escrevi, está tudo documentado nas imagens que foram para o "ar" e nas que que guardo religiosamente.
Bjs
LC
Pois é,
muita gente gosta de passar uma borracha sobre o passado, para que se justifique tudo no presente.Ainda bem que há memória!
abraço
Pedro,
e o que será de um povo que perca a memória?
Ab.
LC
De Artur a 22 de Setembro de 2008
Primeiro parabéns por este magnifico blog, segundo, quero saber onde posso adquirir o seu livro "Reporter de guerra", porque do que li aqui, trouxeram-me recordações boas e más das varias batalha que fiz parte enquanto membro das tropas especiais: Cangamba/Moxico (o meu baptismo); Kwemba/Bié; Kuito Kuanavale; Lomba; Mavinga/KK; Ruacana/Kunene e outras tantas batalhas, por exemplo quase perdia um amigo por inadvertidamente se posicionou por detrás de um BM21, exactamente das salvas. Diga-me onde posso encontrar o livro em Luanda e quanto custa.
Um abraço
Artur/Luanda
De Artur - Correcção a 22 de Setembro de 2008
....por exemplo quase que perdia um amigo porque inadvertidamente se posicionou por detrás de um BM21, exactamente no memento das salvas.
O Artur também deve ter muito para contar...
Ab.
LC
Artur,
em Luanda não consegue comprar.
Em Portugal, se tiver alguém que o possa procurar, já não é fácil de encontrar, mas podem pedir na FNAC que eles encomendam à editora, a Oficina do Livro.
Se mesmo assim não conseguir, envie mail e contacto que eu quando voltar a Luanda levo-lhe um.
Não sei é quando voltarei...
Obrigado.
LC
Luís,
Então já está por cá? Cheiinho de voltar a Angola, está visto...
Qual é o próximo destino? :D
Bjs
Raquel
Por mim pode ser Angola!
Mas não sei... agora, por enquanto, regresso à coordenação do Telejornal na próxima semana.
Mas ainda tenho mais para postar sobre Angola!
Amanhã volto à viagem pelo interior do país.
Bjs
LC
De
patti a 22 de Setembro de 2008
Jornalismo com factos reais, não com suposições.
Isso mesmo.
Factos são factos!
Embora depois possam ser lidos de formas diferentes, consoante as crenças e as ideologias de cada um.
Bjs
LC
De
DD a 23 de Setembro de 2008
Os cubanos copiaram as nossas torretas blindadas e montadas nos camiões Berliet-Tramagal. Só que a blindagem do chão contra as minas era de sacos de areia. De resto, aquilo fazia parte de um conjunto rebenta-minas com um camião à frente e outro atrás.
As torretas tinha quatro poderosas metralhadoras e um potente farol.
Enfim, foi um arma porreira no capim, nunca podia ter sido imaginada por militares treinados para as guerras convencionais.
Já aprendi mais qualquer coisa...
Ab.
LC
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