Domingo, 21 de Setembro de 2008

Sons da Guerra (2ª parte)

Retirado do livro "Repórter de Guerra"

 

Não tenho dormido e a comida mal dá para os soldados, quanto mais para nós. Sinto-me fraco. Pelo que me dizem, a UNITA estará quase a ceder. Se assim for, amanhã teremos mais uma longa caminhada. Fecho os olhos mas a fome não me deixa dormir. Bebo um saco de whisky para adormecer o estômago e tento adivinhar o que os meus filhos estarão a fazer a esta hora. Já são dez da noite. Provavelmente estão a deitar-se. E eu aqui, no meio do mato. Em vez de lhes dar o beijo de boas-noites, estou no meio de um mundo que não devia sequer existir. À falta de sono, não conto carneirinhos mas conto os tiros e tento perceber de onde é que eles vêm.

Simeone simpatizou de tal forma comigo que até me mostra o mapa das operações com os locais onde estão as forças dos dois lados e o plano de operações para este último assalto. Diz-me que é o “tudo ou nada”, pois só nos restam doze quilómetros até ao Quartel-General de Savimbi.

Há alguns dias, durante um bombardeamento quase tão intenso quanto este, um dos comandantes começara a rir quando me viu atirar para o chão.

   - Não vale a pena. E sabe porquê?

   - Não. Não estou a entender…

   - É só fazer contas. Repare: a granada sai do cano a uma velocidade de seiscentos e setenta metros por segundo. Estão a vir tensos ou pingados?

   - Tensos.

   - Nós estamos a quantos metros deles?

   - Talvez uns trezentos, não mais.

   - Por isso, quando você se atira para o chão ele já caiu. Não dá tempo para a reacção.

   Na verdade, nunca imaginara tal. O tenente-coronel acompanhava a explicação com um desenho na terra.

   - Isto vai ajudá-lo a relacionar a saída com a queda. E sabe como é se for de noite?

   - Não.

   O militar assume um ar professoral.

   - Então, é assim: conte os segundos que separam a chama da saída do som correspondente que vem a seguir e multiplique-os por 340 (metros por segundo) que é a velocidade do som. Obtém, deste modo, a distância a que está a arma do inimigo. Fácil, não é?

De repente, uma rajada e outra e outra. Mau! A UNITA terá conseguido intrometer-se entre a infantaria e o comando. Alguém está a disparar sobre nós aqui bem perto. O Paquito é chamado para nos cobrir e dispara várias rajadas sobre o local de onde saiu aquele ataque inesperado. Paquito é o nome dado a um camião blindado onde está montada uma potente metralhadora que traça tudo o que lhe aparece na mira. Uma herança do tempo dos cubanos.

Vejo que há muitos feridos. Um deles tem a mão esfacelada, os dedos ao dependuro, os tendões traçados e, não tarda nada, esvai-se em sangue. Chamo um soldado que acaba por lhe fazer um garrote, colocando-lhe um pau e uma ligadura sobre a ferida. Percebo que a situação é crítica.

(…)

Digo aos restantes três do grupo que, por mim, já tenho muitas horas de imagens fantásticas e, como tal, quero editá-las e pô-las no ar o mais rapidamente possível e antes que percam actualidade. Está visto que das duas uma: ou a UNITA vai vencer, ou as posições vão ficar como estão até que as FAA se reorganizem e voltem a atacar, o que, a acontecer, irá demorar bastante tempo. Perante este cenário, o melhor é sairmos daqui hoje mesmo. Todos concordam que este é o momento para irmos embora.

Desta vez contei os quilómetros desde o local do último combate até ao Andulo.

É certo que estávamos já bem dentro do Município, mas faltavam ainda mais de vinte quilómetros e não dez como referi na altura da reportagem.

Nem que seja dez anos depois, a verdade tem de ser reposta.

Luís Castro

publicado por Luís Castro às 16:15
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16 comentários:
De Artur a 22 de Setembro de 2008
Primeiro parabéns por este magnifico blog, segundo, quero saber onde posso adquirir o seu livro "Reporter de guerra", porque do que li aqui, trouxeram-me recordações boas e más das varias batalha que fiz parte enquanto membro das tropas especiais: Cangamba/Moxico (o meu baptismo); Kwemba/Bié; Kuito Kuanavale; Lomba; Mavinga/KK; Ruacana/Kunene e outras tantas batalhas, por exemplo quase perdia um amigo por inadvertidamente se posicionou por detrás de um BM21, exactamente das salvas. Diga-me onde posso encontrar o livro em Luanda e quanto custa.
Um abraço
Artur/Luanda
De Artur - Correcção a 22 de Setembro de 2008
....por exemplo quase que perdia um amigo porque inadvertidamente se posicionou por detrás de um BM21, exactamente no memento das salvas.
De Luís Castro a 22 de Setembro de 2008
O Artur também deve ter muito para contar...
Ab.
LC
De Luís Castro a 22 de Setembro de 2008
Artur,
em Luanda não consegue comprar.
Em Portugal, se tiver alguém que o possa procurar, já não é fácil de encontrar, mas podem pedir na FNAC que eles encomendam à editora, a Oficina do Livro.
Se mesmo assim não conseguir, envie mail e contacto que eu quando voltar a Luanda levo-lhe um.
Não sei é quando voltarei...
Obrigado.
LC

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Perfil

Jornalista desde 1988
- 8 anos em Rádio:
Rádio Lajes (Açores)
Rádio Nova (Porto)
Rádio Renascença
RDP/Antena 1

- Colaborações em Rádio:
Voz da América
Voz da Alemanha
BBC Rádio
Rádio Caracol (Colômbia)
Diversas - Brasil e na Argentina

- Colaborações Imprensa:
Expresso
Agência Lusa
Revistas diversas
Artigos de Opinião

RTP:
Editor de Política, Economia e Internacional na RTP-Porto (2001/2002)
Coordenador do "Bom-Dia Portugal" (2002/2004)
Coordenador do "Telejornal" (2004/2008)
Editor Executivo de Informação (2008/2010)

Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
"Repórter de Guerra" - autor
"Por que Adoptámos Maddie" - autor
"Curtas Letragens" - co-autor
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