24 de Abril de 2003, nesse dia regressava a Lisboa vindo da guerra do Iraque.
Guardo as memórias daquele mês e meio como se tivesse sido ontem. E ainda hoje, nas aulas e em visitas a escolas e universidades, ou em conferências e palestras para as quais sou convidado, não me canso de repetir um episódio que me marcou para sempre: o massacre de Al-Syidia. Fiz entrevistas a chorar e por momentos deixei de ser jornalista.
Vou partilhar convosco o que aconteceu.
A estrada que nos leva até Bagdade está repleta de gente que pilha tudo o que encontra. Já na capital, a primeira imagem que gravamos é a de um jovem que corre com dois imponentes cavalos acabados de roubar de um dos palácios do Saddam. A segunda é a do massacre de Saydia. Por sorte chegamos na mesma altura que a Al-Jazera e só nós e eles é que registamos essas imagens. Foi há dois dias, quando uma coluna de civis fugia dos combates. No caminho apareceu-lhes um militar americano levantando o punho fechado da mão direita. Como o primeiro carro não parou, os tanques e as metralhadoras abriram fogo, matando mais de sessenta pessoas. Não perceberam que aquele gesto significava parar. Procuro armas ou roupa militar, mas nada, eram mesmo civis. Se dúvidas houvesse, os pedaços de corpos espalhados pela estrada mostram claramente mulheres, crianças e alguns homens.
Os carros estão totalmente crivados de balas ou literalmente destroçados pelos tiros dos tanques. Um cenário que jamais esquecerei. Há pés, mãos, intestinos, cabeças e outros pedaços não identificados de corpos por todo o lado. Horrível. Mais ainda porque já é o segundo dia que estão expostos a um calor abrasador. Os moradores dos prédios vizinhos já enterraram alguns e é um que me relata o que aconteceu. Enquanto isso, desenterram uma mulher, três cabeças e um pé. Estão queimados e irreconhecíveis. Um dos populares puxa-me para que eu veja mais de perto. Aproximo-me agora de um grupo onde alguém levanta as mãos ao alto e chora.
- Americanos? – pergunto.
- Claro que foram os americanos! Há alguns minutos, um soldado veio pedir-nos desculpa. Pedem desculpa… Eu perdi dois irmãos e ele disse que está infeliz pelo que fizeram? Veja, o meu irmão só tinha vinte e oito anos! É esta a democracia da Europa e do Ocidente? Saddam é um criminoso? É, têm razão! E isto? Isto que está a ver neste local poderá voltar a ver mais à frente, a três quilómetros daqui.
Vêm-me as lágrimas. O americano de quem este homem diz ter recebido o tal pedido de desculpas é um soldado de vinte e dois anos que veio da Califórnia. Foi o primeiro a disparar. Quando abandonamos o local, os americanos que assistiam a tudo debaixo de um viaduto começam a arrastar as carcaças retorcidas para fora da estrada. Ao mesmo tempo, mais uma coluna americana dá entrada na capital e os voluntários que, de bandeira branca nas mãos, retiram os mortos levantam os braços em sinal de submissão para que também eles não sejam confundidos com o inimigo.
Entro no jipe a pensar como é que ninguém ensinou a estes soldados que, por aqui, o sinal para mandar parar se faz virando a palma da mão para cima, juntando os cinco dedos e movimentando-os para cima e para baixo? Por que razão é que um iraquiano que foge da morte tem que saber que um punho fechado é o gesto militar para parar? Não se prepararam estudando a cultura e as tradições locais? Que comandantes são estes, mais os generais que estão no Pentágono? Então, não sabem que quando nos estamos a afundar, nem que seja o braço do nosso maior inimigo, é a ele que nos vamos agarrar? Não seria isso que esta gente tentava fazer: fugir para o lado dos mais fortes e aí encontrar segurança? Sinto-me cada vez mais revoltado.
Retirado do livro "Repórter de Guerra"