Sábado, 26 de Abril de 2008

"Estás queimado!"

.

 

 

 

O meu grande amigo Coutinho Ribeiro, do http://oanonimoanonimo.blogs.sapo.pt/ , escreveu que eu vim reconciliado com os americanos. Talvez. Mas devo confessar que sou do tipo perdoo mas não esqueço!

Já aqui publiquei o relato do que me aconteceu durante os dias que estive preso no Iraque. Falta contar o que se passou a seguir.

Para quem não leu, basta procurar na tag “excertos” e consultar pela ordem inversa.

 

 

 Desdobramo-nos em contactos. Os americanos dizem que não podemos voltar a entrar, os kuwaitianos insistem nas já insuportáveis palavras “bukra e inchalá”. De Portugal, da Embaixada norte-americana, dizem que estão a fazer os possíveis e, do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, um alto funcionário aconselha-me a vir embora, porque “conhecendo como conheço os americanos, jamais te deixarão entrar”. O primeiro-ministro Durão Barroso fugiu a todas as perguntas que lhe foram lançadas sobre o caso, o mesmo acontecendo com o ministro da Defesa, Paulo Portas. Estamos por nossa conta; como sempre, de resto.

 

 

O enviado especial do Arabnews, um dos principais jornais do mundo árabe, com edição em inglês e em árabe, escreve sobre o sucedido. No dia seguinte procura-nos, entusiasmado com o destaque que o editor (na Arábia Saudita) lhe dera ao artigo. Oferece-nos um jornal cuja primeira página é uma fotografia de nós os dois e um artigo demolidor para os americanos, onde o autor pôs na nossa boca aquilo que nós disséramos e aquilo que ele pensava. Não é que não o pensássemos também, mas o certo é que não o disséramos para evitar mais problemas. Pouco depois, liga-me o Director de Informação da RTP.

   - Telefonaram-me da Embaixada e enviaram uma cópia de um jornal árabe com uma entrevista vossa. Dizem que depois disto é melhor nem lhes voltarmos a pedir mais nada. Estás queimado.

   Como se não bastasse, o inquérito dos americanos aponta-nos como os únicos culpados pelo sucedido. A minha mulher pede para que me lembre que tenho dois filhos, o meu cunhado acha que sou maluco, os meus pais e a minha irmã dizem-me que não tenho que provar nada a ninguém. Todos têm razão, mas esqueceram-se que sou teimoso, muito teimoso, mesmo. Converso com o Vítor e decidimos não desistir!

 

Exclusive:

Western Journalists Beaten, Starved by Americans

Essam Al-Ghalib, Arab News War Correspondent

 

 

 

 

 

  

http://www.arabnews.com/?page=4&section=0&article=24644&d=3&m=4&y=2003

 

 

 

.

Alugamos outro jipe e formamos uma caravana com mais jornalistas. Pelo caminho, o Marcos Uchoa, da TV Globo, desiste por decisão vinda da sede no Brasil. Continuamos viagem reduzidos a quatro jipes: o nosso, o da France 2, o do Arabnews e o de um jornalista da Letónia. Marcado no GPS o ponto onde se juntam as três fronteiras (kuwaitiana, iraquiana e saudita), atravessamos sem grandes dificuldades.

 

   Voltamos a dar de caras com um acampamento de tropas norte-americanas. O comandante mostra-se extremamente simpático ao saber que somos portugueses. A razão é simples: casou com uma indiana, neta de português. É de Goa e chama-se Cecília Gomes. Confessa-me que come habitualmente comida portuguesa com temperos indianos e que toda a família dela tem por apelidos Paiva, Conceição, Pires, Rodrigues e Fernandes. Vai buscar a fotografia da mulher – linda por sinal –, mostra-a para a câmara, encosta-a ao peito, bate-lhe com a mão, ri e diz: “ Mi amore, mi amore”.

 

 

 A partir daqui, temos tudo o que precisamos. Acolhem-nos e fazem-nos revisão aos jipes. Em troca, ofereço-lhe uma chamada para casa.

   - E posso?

   - Claro. Diga-me o número.

    Enquanto activo o telefone satélite, ele afasta-se por momentos e a Cecília atende do outro lado da linha.

   - Um momento. É do Iraque.

   - Mas o que se passa, o que se passa? – pergunta aflita.

   - Só um momento por favor.

   - Ele morreu, foi? – insiste já chorosa.

   - Não, não! Ele vai falar consigo.

    Grito:

   - Ó major! Está aqui a sua mulher.

    Risada geral no acampamento. Corre, agarra no auscultador, chora, ri e quando desliga diz-me que há várias semanas que não falavam.

 

Pergunta se o segundo comandante também pode telefonar. Digo-lhe que sim e faço a segunda chamada. Os soldados imitam-no e pedem para falar com as famílias, acabando por se formarem em longas filas para cada um dos três telefones satélites: o meu, o dos franceses e o do saudita. Passo o resto da tarde e parte da noite a marcar números para os Estados Unidos e a pedir aos soldados que tentem ser rápidos em cada ligação. Estes marines merecem, porque até agora foram os únicos que nos ajudaram. Assisto a momentos em que também eu acabo por ficar comovido, tal é a emoção nas conversas que estes jovens têm ao telefone depois de tanto tempo incomunicáveis no meio deste deserto.

 

*Retirado do livro "Repórter de Guerra"

publicado por Luís Castro às 03:21
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52 comentários:
De J.C. a 28 de Abril de 2008
Vi a peça no " Só visto " foi com prazer que vi falar do Blog.
Continua a fazer o que fazes tão bem e fica por aqui.

um abraço

jmack
De Luís Castro a 28 de Abril de 2008
jmack,
já não te "lia" por aqui há uns tempos.
Obrigado.
Vou ficar, vou!
Abraço
LC
De alex a 28 de Abril de 2008
olá luis...

nunca sei muito bem como começar estes comentarios aos seus post pk são sempre muitas as ideias e as sensações k temos ao le-los... pude ler suas respostas... é notavel como responde a todos independentemente do tema abordado!

vamos então ao post...
começa com uma frase k uso muito... perdoo mas não eskeço.. tantas vezes eu teria tb eskecido se pudesse ...

depois o dia a seguir... repito k varias coisas me ocorrem ... sem ser o luis ... isso já lá vamos...o alheamento da nossa diplomacia quando um dos nossos está obviamente em perigo....
o sentimento k já aki li de k em kker canto do mundo há um português....
depois a atitude do jornalista arabe k mesmo com as desculpas k o luis já lhe arrajou de ser novo, kerer projeção, e sem uma reportagem anti americana devia... sim ... ter pensado nas consequências k isso vos traria... o luis faria-o certo?

a si...penso k tal como a maior parte das pessoas k aki escrevem, já percebeu que o admiramos muito...

teve a coragem de ficar kdo a maior parte de nós teria partido... (se calhar a sua familia não concorda comigo aki... confesso k os entendo)...mais ainda mais quando 5 anos depois voltou sem garantias de nada... teve sorte fez amigos... mas podia não ter sido assim....

rementendo-nos a altura (2003) que capacidade extraordinária é essa que possui que lhe permite passar um dia inteiro a proporcionar momentos bons e unicos aos soldados do mesmo exercito que o tinham capturado.......

sim pk uma coisa é com a distancia temporal de 5 anos e no conforto do teclado e monitor dizermos que eram obviamente pessoas diferentes..
seres humanos k como todos nos têm saudades de casa...
mas na altura e lá... espero que tenha consciência que não há muitos seres humanos como o luis infelizmente... e
se recorreu a um amigo para reencontrar o equilibrio e não ter uma atitude menos imparcial... então ... isso é humano

não é facil de facto encontrar o seu livro ... no meu caso tive de o encomendar... chega esta semana!

por ultimo... sim k isto hoje já vai longo...kdo diz k sente k neste mês ganhou mais uns ktos amigos... e admitindo k é de nós k fala... muito obrigada... é um privilégio...
já agora tb reparei (é mania minha) que desta vez escreveu 41 anos e não 40.... se for esse o caso muitos parabens!
bjs
alex





De Luís Castro a 28 de Abril de 2008
Sim, Alex, já são 41 anos...
Por ordem:
-Esqueço mas não perdoo. Há que ter memória e aprender com o passado para projectar o futuro. Não podemos é ficar toldados pela vingança.
-Jornalistas e diplomatas nem sempre combinam. Nós alteramos a sua pacatez quando chegamos...
-Não, não faria o mesmo que o jornalista árabe fez, mas ele acabou por fazer parte da nossa mini-caravana que reentrou no Iraque e conhecio-o um pouco melhor. Será a continuação deste último post.
-Sou muito teimoso!!! Ou como ontem uma psicóloga que me veio entrevistar para a sua tese de doutoramento decidiu chamar-me: "persistente".
- Sou muitou pragmático e não perco tempo com o que me desgasta. Aprendo e dou o passo em frente imediatamente. Sou muito positivista, nada recalcado e nada rendilhado.
Espero que goste do livro.
Bjs
LC
De alex a 28 de Abril de 2008
bem... axo k respondeu a tudo........desculpe se algum dia escrever demais... o dificil é começar...

muito obrigado luis pela resposta, e por me dar uma nova definição para teimosia.... acredite k tb eu a vou usar muito....

mais uma vez obrigada e parabens!
bjs
alex
De Luís Castro a 28 de Abril de 2008
Alex,
bjs e sempre às vossas ordens!!!
LC
De A Mona Lisa tinha Gases a 29 de Abril de 2008
Fico cada vez mais tentada a comprar este livro, Luís! :D
Deve ter sido o máximo dares essa oportunidade aos soldados. Naquele dia, de certeza que foste o herói de toda a gente!
Beijinho
De Luís Castro a 29 de Abril de 2008
Mona,
o problema foi depois. Alguém tentou fazer uma chamada sem que eu visse e acabaram por bloquear o telefone e o cartão. Fiquei sem telefone satélite e, até Bagdade, tive que passar a usar os dois franceses e do saudita.
Mas foi muito comovente ouvir todas aquelas conversas...
Bjs
LC
De Luís Castro a 29 de Abril de 2008
Quanto ao llivro,
acho que vai gostar...
Bjs
LC
De Luís Castro a 29 de Abril de 2008
Embora eu seja suspeito, claro!
LC
De Luís Castro a 29 de Abril de 2008
Mona,
talvez seja melhor comprares pelo link do blogue para o webboom. É mais barato e já não há muitos à venda.
Está praticamente esgotado.
Bjs
LC

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Perfil

Jornalista desde 1988
- 8 anos em Rádio:
Rádio Lajes (Açores)
Rádio Nova (Porto)
Rádio Renascença
RDP/Antena 1

- Colaborações em Rádio:
Voz da América
Voz da Alemanha
BBC Rádio
Rádio Caracol (Colômbia)
Diversas - Brasil e na Argentina

- Colaborações Imprensa:
Expresso
Agência Lusa
Revistas diversas
Artigos de Opinião

RTP:
Editor de Política, Economia e Internacional na RTP-Porto (2001/2002)
Coordenador do "Bom-Dia Portugal" (2002/2004)
Coordenador do "Telejornal" (2004/2008)
Editor Executivo de Informação (2008/2010)

Enviado especial:
20 guerras/situações de conflito

Outras:
Formador em cursos relacionados com jornalismo de guerra e com forças especiais
Protagonista do documentário "Em nome de Allah", da televisão Iraniana
ONG "Missão Infinita" - Presidente

Obras publicadas:
"Repórter de Guerra" - autor
"Por que Adoptámos Maddie" - autor
"Curtas Letragens" - co-autor
"Os Dias de Bagdade" - colaboração
"Sonhos Que o Vento Levou" - colaboração
"10 Anos de Microcrédito" - colaboração

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