Como é possível? Será que ninguém se interessa? Aqui morre-se ao segundo e o mundo foi-se embora. O que estou a ver e a sentir devia corroer até à morte muitos dos nossos políticos e não estes pobres esqueletos que já não têm força sequer para afastar as moscas dos lábios e dos olhos.
E as crianças... há muito filho da puta que merecia uma morte assim, não estes inocentes! Ganho coragem e arranco um bebé dos braços de uma mãe moribunda. Entrego-o a um funcionário local de uma ONG internacional.
- Não vê que esta mãe está a morrer e ao bebé também já não falta
muito?
O Homem aconchega o bebé nos braços e responde-me:
- Senhor, são centenas nas mesmas condições. Não podemos acudir a todos ao mesmo tempo. Também não há leite nem medicamentos.
Sinto-lhe a frustração. Terá a minha idade, pouco mais de trinta anos, mas vivemos em mundos diferentes. Agora, vejo como se morre «ao vivo». Estou arrepiado e a temperatura do ar deve rondar os trinta e oito graus. O suor gela à saída dos poros.
Mais tarde, já em Luanda, quando acabar de editar a reportagem, ficarei com a sensação de não ter conseguido mostrar a real dimensão da tragédia que se abatera sobre aqueles campos de refugiados, nos arredores da capital da província do Bié. Trezentas mil pessoas à espera da morte. O inferno é aqui mesmo.
Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Dez anos depois, regresso ao Kuito, a cidade mártir.
Os vestígios da guerra ainda estão presentes.
Não havia um palmo de parede sem o buraco de uma bala.
Há poucos anos, o Kuito era todo assim.
Do outro lado da rua, nota-se a mudança.
Avenida central da cidade do Kuito.
Com 1.200 Km já percorridos, não há carro que resista...
Luís Castro no Kuito