A Guiné-Bissau não tem emenda.
Há oito dias, recebi um telefonema de uma fonte bem informada: “Atenção que pode estar por horas um golpe na Guiné”. Cruzo telefonemas com Bissau e militares guineenses de alta patente confirmam: “Sim, é verdade. Mas sabemos quem são e já estão controlados!”
Julgo oportuno publicar pequenas partes do que vivi durante o golpe de Estado de 2003, o tal que depôs Kumba Ialá, o homem do barrete vermelho.
Retirado do livro “Repórter de Guerra”
Pela primeira vez na história da televisão portuguesa, uma equipa da RTP viu como se prepara um golpe de Estado, acompanhou os bastidores nos dias que o antecederam e o procederam, conheceu os intervenientes directos e indirectos e sentiu os anseios, medos, pressões, ameaças e ambições.
Porque é algo demasiado recente, e pela instabilidade política e militar que a Guiné continua a viver, o golpe de 14 de Setembro de 2003 é, ainda hoje, matéria demasiado sensível. Algumas pessoas foram assassinadas na sequência da intentona, mas outras há que continuam vivas e que têm que ser preservadas ou mantidas no anonimato.
O dever moral e profissional impede-me de contar o que seria, muito provavelmente, a parte mais aliciante para o leitor. Por tudo isto, o relato dos acontecimentos será apenas uma parte de tudo o que aconteceu.
O número está registado na memória e identifica a proveniência da chamada. É de um telefone satélite.
- Faz a mala e prepara-te! Não faças perguntas. Quando é que podes estar cá?
- Ora bem, hoje é segunda-feira, dia oito… Se tudo correr bem, talvez na quarta, dia dez.
- Ok. Vai dar tempo. Mas tens de chegar o mais tardar na sexta-feira. “Aquilo” vai ser nesse dia à noite.
- Estás a falar de um golpe de Estado?
- Não repitas essas palavras. É demasiado perigoso ao telefone, mesmo sendo satélite.
- És tu e quem mais?
- Saberás cá, mas não é difícil adivinhares.
- Ok, ok. Mas tens a certeza que vai dar tempo?
- Vai, vai. Agora vê lá, ninguém, mas mesmo ninguém pode saber disto!
- Mas há uma pessoa que vai ter de saber… o José Rodrigues dos Santos.
- Mas porquê?
- Porque é o meu Director.
- E não lhe podes dizer que queres vir cá fazer uma reportagem?
- Não, claro que não! Ele tem que concordar com a minha ida aí e a Administração tem de autorizar a saída de uma equipa para o estrangeiro.
- Isso já é gente a mais…
- Não te preocupes, eu sei como fazer as coisas.
- Não é só por mim, Luís. É que se há uma fuga, já sabes, morremos todos! Até tu!
(…)
Quando o avião da Air Luxor aterra, retiram-nos discretamente sem passarmos pela emigração. Um General agarra nos nossos passaportes e passa-os ao ajudante, para que os vá carimbar. Até as nossas malas são retiradas antes de chegarem ao tapete rolante e guardadas no jipe que nos levará para a cidade. Ele é alguém que eu conheço do tempo da guerra e a quem trato por tu, tal como a muitos outros chefes militares da Guiné. Seguimos para Bissau.
- Está tudo pronto?
- Faltam alguns pormenores.
- O quê?
- Faltavas tu!
- Eu?! Não me digas que estavam à minha espera para dar o golpe?
- Estou a brincar. Não sabemos ainda se vai ser na sexta-feira.
- Olha que eu não posso ficar aqui muito tempo, de braços cruzados, sem fazer nada – aviso. – Vai haver quem questione o que estou cá a fazer e, mesmo lá, na RTP, vão ficar a saber para onde eu vim. Dará falatório, cá e lá!
- Não te preocupes. Se não for de sexta para sábado, será de sábado para domingo. É só mais um dia. Há uns pequenos problemas para resolver. Nada de complicado.
(…)
Ficamos à espera do golpe, que, sempre se confirma, será de sábado para domingo. Até lá, assistimos – por dentro – aos preparativos, às reuniões, às alianças e aos jogos de poder para o pós-golpe. Como um dos desfechos previstos da operação será entregar o Presidente guineense à Embaixada Portuguesa, tento perceber se os elementos do Grupo de Operações Especiais que cá estão desconfiam de alguma coisa. Voltamos à Embaixada à procura do chefe da missão do GOE. Conversamos, bebemos café, mais conversa, mais um cigarrito, mais conversa e… está visto, não sabem que o golpe será daí a umas horas. Um deles diz-me que costuma correr todas as madrugadas pelas ruas de Bissau. Segredo ao ouvido do meu repórter de guerra: “ainda acaba preso ou com um tiro na cabeça!” O problema é que só agora conheci o responsável e os restantes quatro são novos nas Operações Especiais da PSP. Não sei se lhes posso confiar este segredo. Decido telefonar ao Magina, que é um dos grandes amigos que eu fiz no Zaire. É o segundo comandante do GOE.
- Onde estás, Luís? Este é um número de telefone satélite, não é?
- É. E estou longe. Não te posso contar muito.
- És sempre o mesmo maluco! Já andas em mais uma caldeirada…
- É. De vez em quando preciso de um chuto de pólvora. Mas o nome Vieira diz-te alguma coisa?
- Sim, claro…
- Não digas mais nada! – interrompo. Pode estar algum “passarinho” pendurado na linha. Abordei-o esta tarde e o homem está a seco. Prepara o teu pessoal e diz-lhes que vai haver agitação esta noite. Se eles virem um Mercedes branco estacionado perto da porta da Embaixada, que não se preocupem, é o nosso carro.
- Ok, ok.
- Depois que se preparem porque, provavelmente, vão ter visitas.
- Como assim?
- Querem-lhes entregar o homem do barrete vermelho, tal como já aconteceu com o outro (o Nino Vieira) no passado.
- Ok, já percebi! Obrigado, Luís.
- Magina, atenção que eu estou a fazer isto completamente à revelia deles. Saí para te telefonar sem que me vissem. Ninguém pode saber que esta conversa existiu! É só para tua informação e para que tu e os teus homens não sejam apanhados de surpresa. Já agora, avisa o que costuma correr durante a madrugada para que fique sossegado esta noite.
- Tudo bem. Diz-me só mais uma coisa: isso vai dar fugachada?
- Se correr tudo como eles prevêem, e como já reparaste estou cá há alguns dias a acompanhar os preparativos nos bastidores, deverá ser uma coisa pacífica. Eles têm tudo controlado, mas sabes como é.
- Vê lá se tens cuidado contigo. E se precisares de alguma coisa, dentro do que nos for possível, a malta ajuda-te. Juízo!
- Volto para junto do grupo. Ninguém suspeitou de nada.
Continua... amanhã.