***CABINDA - PARTE 6***
Expulsos de Cabinda
Há que fazer chegar estas imagens rapidamente a Lisboa. Meto-me num pequeno avião que faz voos domésticos e vou para Luanda. Montada a reportagem, volto para Cabinda com mais jornalistas portugueses que tinham acabado de aterrar na capital angolana. Como já lhes conhecia a chegada, aviso Lisboa de que está na altura de começar a pôr as reportagens no ar, antes que a concorrência também consiga furar. Combinara com os meus contactos esperar alguns dias para não lhes revelar as identidades, mas não podemos esperar mais. Reconheço que foi violento para quem chega ver que aquilo que aqui vinha fazer já está feito por nós. Paciência. Num sábado passa a reportagem com a FLEC-Renovada, no domingo vai a da FLEC-FAC. As duas são abertura do Telejornal. Pouco tempo depois de ser emitida a primeira, recebo a visita do general Luís Mendes.
- Sempre conseguiste!
- O senhor general sabia que eu não vinha para dar mergulhos na piscina do hotel…
- E a FLEC-FAC, também conseguiste?
- Consegui.
- E quando passa?
- Passa amanhã.
O general faz uma careta e põe a mão na testa, fazendo-a deslizar pelos olhos.
- E tem de ser mesmo amanhã?
- Tem.
- Não podes adiar por uns dias?
- Não. Já foi anunciado que passa amanhã.
- Tchiiii! Nem imaginas a quantidade de telefonemas de Luanda que eu já recebi depois de passar a tua reportagem de hoje. Agora, com a de amanhã… nem quero imaginar o que vai ser. Até já desliguei os telefones. Bem, logo se verá.
Fico com pena do general e com uma simpatia ainda maior por este homem que sempre aparentara um ar calmo, descontraído e moderado. Agora, parece nervoso e desorientado, mas até neste momento mostra ser um cavalheiro. Outro qualquer, no mínimo, nem olhava para mim ou agarrava em nós e metia-nos num avião militar para Luanda. Em vez disso, compreendeu que temos missões opostas. Sinto-me triunfante, não pelo embaraço ou pelos problemas que causamos ao general, mas pela certeza de que fomos às duas guerrilhas e ele nunca soube que o fizéramos. Fantástico. Quem não gostou mesmo nada das nossas incursões foram o governador e os Serviços Secretos. O governador manda-nos um recado: «Cuidado com as balas perdidas!» Aviso imediatamente o cônsul em Cabinda e o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal. «Se algo nos acontecer, a culpa foi do governador!» Não é um aviso, é uma ameaça! Uma hora depois, a resistência vem avisar-nos de que a polícia se prepara para nos fazer uma rusga aos nossos quartos. Destruo todos os papéis com nomes e números de telefone, apago o registo das últimas chamadas e escondo o bloco de notas. Quanto às cassetes, não há problema, porque as mais comprometedoras já estão guardadas na delegação da RTP África,
Para completar com total sucesso esta nossa vinda a Cabinda só falta mesmo ter imagens dos reféns. O cerco está agora mais apertado do que nunca e é impossível entrar na mata sem ser visto. «Se você fosse preto…» Mas como não sou, é quase impossível ir e voltar sem levar um tiro. Assim sendo, há que encontrar alternativas e uma delas é ensinar um dos elementos da resistência a filmar com a nossa câmara. Como os da FLEC-FAC continuam desconfiados e os da FLEC Renovada já acreditam em nós, a mini-DV segue em direcção aos que foram raptados mais recentemente. O “contacto” leva também um papel com algumas perguntas às quais quero que me respondam. Três dias depois, a câmara chega à cidade transportada por um jovem. Vinha com ela dentro de uma sacola preta, abanando-a na mão como se de nada de importante se tratasse. Levo-a imediatamente para Luanda.
Edito as imagens de maneira a que fique a dúvida se fui eu a fazê-las ou se elas nos chegaram assim. Mais uma vez, há que proteger quem nos tem ajudado. Abro a peça dizendo que a reportagem começa já no interior da densa e húmida floresta tropical de Cabinda. Os primeiros planos mostram alguns guerrilheiros que retiram água de um poço. As seguintes conduzem-nos para o interior da base, onde se pode ver uma pequena zona sem capim no chão e algumas palhotas. Olhando para cima, percebe-se que do ar ninguém consegue descobrir este local, pois as copas das árvores só deixam entrar alguns raios de luz. Há quem cozinhe em pequenas latas, quem transporte água ou quem desbrave a muita vegetação que se forma à volta das bananeiras. A uma mesa sentam-se seis comandantes da guerrilha à volta de um mapa, rabiscando as próximas emboscadas às tropas do Governo. Fico a saber onde vão acontecer, mas faço por esquecer. Um pouco mais ao lado, um dos soldados comunica com as várias bases da organização.
A objectiva da câmara percorre todos os cantos do acampamento até se fixar no local onde dormem os reféns. Vêem-se estrados feitos de paus entrelaçados e elevados a meio metro do chão por quatro estacas espetadas na terra. Esteiras fazem de colchão, uma lona abriga-os da chuva e os mosquiteiros impedem a entrada de bicharada. Há cobertores dobrados e roupas penduradas nos troncos que suportam a estrutura. É aqui que dormem os cinco portugueses da Soares da Costa e o motorista angolano, já lá vão duas semanas. Pobres desgraçados. Mas, por estranho que pareça, qualquer uma das duas guerrilhas deixa que os reféns andem “livremente” pelas bases. Não estão fechados, muito menos acorrentados. Refém e sequestrador sabem que é impossível sair dali com vida e qualquer fuga tem como destino a morte, não às mãos da FLEC, mas pela incapacidade de sobreviver ou de orientação na densa floresta do Maiombe. É por isso que as imagens mostram os trabalhadores da Soares da Costa jogando à malha, no meio das árvores, e como se nada de anormal tivesse acontecido.
Quatro jogam enquanto o quinto está sentado na “enfermaria” para lhe medirem a tensão.
- Como se sente?
- Há sempre aquela preocupação que vem à cabeça, que ocorre, porque nunca estive numa situação destas. Tenho sempre o meu pensamento no outro lado, com a minha família. A minha esposa não é muito saudável. Nunca me senti numa posição assim… Esta posição é muito ingrata.
Numa das mesas da “enfermaria” há dois pacotes de bolachas e uma garrafa de whisky. Dizem que «é para os portugueses se sentirem
«O que eu tenho a dizer ao governo português é que faça o que tem a fazer o mais depressa possível, porque não aguentamos muito mais tempo. Quando chega a noite, moralmente estamos afectados e já não há paciência para nos aturarmos uns aos outros.»
«Que olhem para a nossa situação. Somos inocentes e andamos aqui a trabalhar para ganhar algum dinheiro. Estamos ansiosos por sair daqui para fora.»
«Peço à minha mulher que aguente um bocadinho, que melhores dias virão e que há-de chegar o dia em que serei libertado. Nessa altura irei abraçá-la, a ela e à minha filha.»
Guardo para o fim a entrevista com o Brigadeiro Mamboma, o mesmo que eu entrevistara três semanas antes. «A FLEC Renovada garante a segurança dos maridos, pais, filhos ou irmãos e assegura-vos que nenhum dano, violência física ou moral lhes serão aplicados.» Dizem que não querem dinheiro, apenas que Portugal não se esqueça deles.
Foi mais uma bomba! Estamos por um fio. Falta-nos ainda uma reportagem importante sobre a situação em Cabinda: o papel da Igreja na luta pela independência. A missa que quero filmar é a do padre Congo. São centenas de pessoas numa cerimónia que começa com uma procissão onde se cantam letras religiosas, ritmadas com sons africanos. Uma banda e um coro fazem o resto. Vem gente de todo o lado para ouvir o padre que diz em voz alta aquilo que o povo pensa. As missas, mais do que actos de fé, são verdadeiros gritos de liberdade. O Congo não perde a oportunidade de ser, mais uma vez, aquilo que é: um político temido por Luanda. «Será que Jesus é insensível à contestação política? Não faz política séria quem se intromete na privacidade através de escutas telefónicas e outros meios sofisticados para controlar as pessoas e as instituições e eliminar fisicamente os adversários.» Ele sabe do que fala. A meio da homilia, o padre grita «Liberdade sem terra…» e a assistência responde: «É uma ilusão!», repetem mais duas vezes até nova tirada: «E terra sem liberdade?» Novamente o coro: «É escravatura!» O sacerdote conclui: «É ser estrangeiro na própria terra!» E o povo, cada vez mais inflamado, grita: «É ser estrangeiro na própria terra!» Estou arrepiado.
A expulsão já não apanha ninguém de surpresa. Eu filmo o Artur enquanto ele vai guardando o material e ele filma-me a mim a arrumar a mala. Estas imagens vão servir de suporte para a notícia sobre a nossa expulsão do enclave. Anuncio-a por telefone satélite no Jornal da Tarde e abandonamos o hotel. Os empregados, emocionados, vêm à rua para se despedirem dos "amigos" jornalistas portugueses. Já em Luanda, no Telejornal, falo sem papas na língua e sem medo das consequências. O Ramiro Mendes, delegado da RTP em Angola, põe as mãos na cabeça.
Chego a Lisboa com uma certeza: tenho de voltar lá. Fomos expulsos na altura em que, finalmente, conquistara a confiança da FLEC-FAC. Assim, a visita já autorizada vai ter que ser feita por Ponta Negra, no outro Congo. Desta vez preparo-me tecnicamente para uma operação inédita: emitir em directo da mata e ter os reféns da Mota e Companhia a meu lado. Será uma caminhada de uma semana, carregando o material por cerca de trezentos quilómetros floresta adentro. O ex-refém Sérgio Fidalgo, que perdeu quase quarenta quilos, diz-me que quer ir comigo. Quer voltar. Perante a minha surpresa, afirma: «O que quer, fiquei a gostar daquela gente!» Acredito na sinceridade das suas palavras, mas espanta-me, porque da mata pouco mais trouxe do que pele e osso. Sofre da Síndrome de Estocolmo, que se caracteriza por uma estranha amizade que fica entre refém e sequestrador. No fundo, o raptado vai-se solidarizando com as motivações políticas dos sequestradores. A “Operação Regresso” fica anulada quando a guerrilha liberta os últimos dois, ao fim de quase um ano de cativeiro. Sinto-me frustrado, mas ainda bem para eles.
Fim.
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro
***CABINDA - PARTE V***
Na interior da floresta com a FLEC-FAC
Os portugueses que vivem em Cabinda dizem-se revoltados com o governo português. «O PS tem medo de enfrentar o problema! Se reparar, só raptam portugueses!» - A opinião é de Daniel Oliveira, há muitos anos aqui radicado. A filha Maria Albertina confirma-me que este último sequestro «mexeu muito com os portugueses. Estamos muito nervosos e preocupados.» Vou falando com Eduardo Saraiva e José Lello para saber se algo está a ser feito por estes desgraçados. O Eduardo é meu amigo e adjunto de Lello na Secretaria da Estado das Comunidades e critica-me por ter vindo para Cabinda.
- Estás a dar voz a terroristas que raptam portugueses e não ajudas em nada os reféns! Se fosse Director de Informação da RTP, tirava-te imediatamente daí!
- Pois, mas ainda bem que não és!
Por acaso tenho outra opinião: acho que o governo é o grande culpado de eles continuaram sequestrados lá na floresta e que pouco ou nada fez para que eles fossem libertados. Já lá vão onze meses e, ao que sei, um deles está muito doente. Percebo que não podem ceder a chantagens, mas onde andam os serviços secretos e os diplomatas para resolverem estes casos? Soube que um ministro pressionou a Direcção e a Administração para que me fizessem regressar a Lisboa mais cedo. Ainda bem que não o conseguiram. Ficaria aqui nem que fosse de férias.
A teoria do padre Congo confirmou-se: os rebeldes da FLEC-FAC ficaram com ciúmes ao saberem que a Renovada tinha saído da mata para ir quase à cidade só para estar connosco. Também nos vão receber. Pedem que aguardemos mais uns dias para prepararem a operação. Como a vigilância está a apertar, combinamos nomes de código para que não entendam as nossas conversas e para que não descubram os nossos planos. Assim, o Artur passa a “Bico bico”. Tudo porque sempre que quer desanuviar, à noite, recolhe-se do outro lado da estrada, junto a um charco, onde dezenas de rãs fazem um barulho ensurdecedor. Por incrível que pareça, e pela mistura dos sons, mais parece que dizem bico-bico, bico-bico durante horas a fio. O padre Congo é o “Jardel”, já que é o nosso ponta-de-lança. Quanto aos restantes portugueses, não que tenham algo a ver com a nossa missão, mas porque passamos muito tempo juntos, o Pedro foi baptizado como o “Malha
Saímos rumo à floresta de Maiombe. A cidade dorme e não há ninguém na rua. É a ala civil da resistência que nos vai levar até aos rebeldes da FAC. O ponto de contacto está marcado para uma zona habitualmente usada por madeireiros. Seguimos de jipe para o interior do enclave, entramos na floresta, percorremos picadas, atravessamos riachos e já estou perdido. Não faço a mínima ideia se viemos para Norte, se para Sul ou em qualquer outra direcção. Só sei que nos afastámos do mar e que esta floresta é de uma beleza indescritível. Ao fim de algumas horas, avisto grandes troncos de madeira tropical empilhados e prontos para serem carregados e exportados. Não aparece ninguém e começo a ficar desconfiado com tão prolongada demora. Tento telefonar para o número deles mas o nosso sinal bate na copa das árvores e não passa para o satélite.
- Vamos recuar, talvez não seja este o local.
A decisão do guia é bem recebida tanto por mim como pelo Artur.
Percorridos alguns quilómetros, o motorista trava de repente.
- Vi alguém.
- Militar ou civil?
- Não sei, só lhe vi a cabeça.
- Faz marcha atrás, rápido!
A cabeça lá está. Agora, há uma mão que sai também do meio da vegetação e que faz sinal para nos aproximarmos. Escondemos o carro e entramos no mato atrás daquele jovem que se mostrara à nossa passagem. Uns metros depois e aparece o primeiro guerrilheiro da FLEC-FAC. Cumprimenta-nos com um aperto de mão e acena com a cabeça para que o sigamos. Juntam-se mais dois e oferecem-se para carregar o nosso material. A vegetação é muito fechada. Não consigo ver para além de dois ou três metros à minha frente, o que faz com que tenhamos que andar
À frente seguem dois guerrilheiros com a arma pronta a disparar a qualquer momento. Têm cerca de sessenta anos e afastam a vegetação para podermos passar. É incrível a forma como andam, pisando as folhas secas praticamente sem fazerem ruído. Só as nossas botas parecem tocar o chão. À minha frente segue o único que vai vestido à civil e que transporta a mochila com algum do nosso equipamento. Depois, sigo eu com o telefone satélite, o Artur com a câmara sempre ligada e outros dois rebeldes fecham a pequena coluna. A vegetação continua muito fechada e quando abre junto ao solo fecha nas copas das árvores, fazendo ecoar os milhares de sons que se ouvem na floresta. Afinal, o Maiombe é ainda mais misterioso do que me tinham contado. A caminhada termina numa pequena clareira onde se reúne um grupo com cerca de trinta homens altamente armados. Um deles sai e vem ao nosso encontro. Traz os olhos muito arregalados. Nota-se que está ansioso. Aparenta menos de cinquenta anos, é alto e magro. O camuflado não está em mau estado e traz uma T-shirt também ela camuflada e que parece ter sido estreada para a ocasião. Carrega uma kalashnikov e vários carregadores no cinturão. «Da nossa parte, estamos muito agradecidos por terem chegado às terras de Cabinda e, sobretudo, por terem vindo às terras libertadas da FLEC-FAC. Chamo-me Estanislau Boma e sou o chefe do Estado-Maior da FLEC-FAC, que é liderada pelo senhor Nzita Tiago. Há bastante tempo que fomos sentindo a vossa preocupação de nos visitarem e o nosso pequeno silêncio e a pequena demora deveu-se ao facto de estarmos em guerra e de termos que controlar a situação no terreno para vos oferecer segurança.» Caminhamos para junto dos outros guerrilheiros, de maneira a que eles fiquem no enquadramento. Nem é preciso fazer perguntas para que o líder militar da guerrilha comece a debitar.
«Precisamos que o mundo saiba e que Portugal venha colocar-se no seu lugar, porque Portugal, sendo o país que veio assinar o tratado com os nossos velhos tradicionais, ao sair de Cabinda, devia ter deixado o direito aos cabindas. Mas os portugueses traíram o povo de Cabinda, dando Cabinda aos angolanos. Eles invadiram o território com ocupação militar e nós ficámos obrigados a fazer guerra aos angolanos durante vinte e seis anos. É uma guerra pela independência total e incondicional. Portugal deve assumir-se naquilo que ele sabe sobre Cabinda: voltar à sua administração, se for necessário, e retirar de Cabinda a presença angolana, para depois tratar directamente com os nacionalistas.» O líder da guerrilha despeja a cassete sem que me dar tempo para grandes perguntas.
- Qual é, neste momento, o estado de saúde dos três portugueses por vocês raptados?
- É normal.
- Até quando é que os vão manter sequestrados?
- Essa decisão depende do nosso presidente que está em contacto com o governo português.
- Mas como é que eles estão?
- Eles passam bem. Infelizmente, as nossas condições, sem ajuda exterior, fazem com que eles quebrem um pouco, mas são bem assistidos, porque devem gozar de uma protecção e segurança efectivas.
Terminada a entrevista, peço-lhe que nos permita ver os reféns. Diz que estão longe daqui. Insisto para que nos deixem ir com eles, mas Estanislau Boma mostra-me uma carta assinada por Nzita Tiago em que apenas lhe dá autorização para falar connosco e não para nos levar com eles para a base. «Têm que pedir ao Presidente.» Não vale a pena insistir. Ver os portugueses sequestrados está fora de hipótese, ir com eles também, resta-nos aproveitar o momento para fazer todas as perguntas possíveis e recolher o máximo de imagens, já que as últimas conseguidas datam de há mais de dez anos. Uma hora depois de os termos encontrado, eles voltam a desaparecer por entre a vegetação.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro
***CABINDA - PARTE IV***
Mais oito portugueses raptados
Estou a tomar um duche quando um dos empregados bate à porta do meu quarto.
- O senhor Artur pede para ir com urgência à recepção.
- Passa-se alguma coisa?
- É a segurança.
- Qual segurança?
- A secreta…
- Quem?
Já só lhe oiço os passos a afastar-se. Minutos depois, chego à recepção. O Artur explica-me que nos querem expulsar.
- Vocês não são bem-vindos a Cabinda!
- Desculpe?
- O vosso trabalho não está a ser positivo para o governo da província nem para o governo de Angola!
- Desculpe lá, mas deve haver um engano. Primeiro, ainda não emitimos qualquer reportagem, nem fizemos qualquer intervenção em directo ou por telefone; segundo, não estamos aqui para agradar a ninguém; e, terceiro, se querem expulsar-nos, então façam-no com uma ordem por escrito. Não vamos sair daqui assim, sem mais nem menos. Depois, quando tiverem o tal papel, vão ter de me algemar para me meterem num avião para Luanda! Diga isso ao senhor governador!
Falo em voz alta para que as pessoas que se encontram na recepção se apercebam do que nos está a acontecer. O cozinheiro português avisa o cônsul. Está visto que não nos querem no enclave, mas que também não pretendem assumir oficialmente a expulsão. Tentam amedrontar-nos. O tipo da secreta que nos procurou no hotel diz que vai arranjar o tal documento com a expulsão e que volta. Não voltou. O dono do hotel tenta sossegar-nos oferecendo-se para falar com o seu amigo e sócio. Desanuvia a tensão dizendo que «o governador também ganha com a vossa presença na cidade e se saírem sempre serão menos dois bons clientes no hotel, que também é dele».
Daqui em diante estaremos no fio da navalha. E, como a qualquer momento poderão expulsar-nos, o melhor é começar a recolher mais material que nos permita depois editar outras reportagens sobre a situação no enclave. Vamos para a rua filmar os buracos e ouvir a miséria das pessoas.
O António tem vinte anos e está desempregado, tal como mais de dois terços dos jovens de Cabinda. Diz-nos que «o governo não quer saber da população e que os políticos guardam o dinheiro só para eles.» Acaba com um «tá-se mal!» É obrigatório ouvir o Padre Congo, aquele que diz o que mais ninguém ousa dizer. Ele é a voz mais incómoda para as autoridades angolanas.
- Padre, como seria Cabinda independente?
- Seria diferente. Este povo passa todo o dia à procura de pão. Como dizia Jeremias, até os sacerdotes abandonaram o altar à procura de comida.
No enclave habitam trezentas mil pessoas. É pouco maior do que o Algarve e tem alguns dos campos petrolíferos mais ricos do mundo. Aqui produzem-se para cima de setecentos mil barris por dia, o que corresponde a quase dois terços de toda a produção do país. Tchiowa, vulgarmente também conhecida por Cabinda, praticamente não tem electricidade. Falta água potável e saneamento básico.
Só nos falta filmar portugueses no enclave e ir ao marco que assinala o Tratado de Simulambuco. Chegados, damos com um monumento abandonado e esquecido. Numa das faces do monumento lê-se: “Neste lugar de Simulambuco foi assinado em 1 de Fevereiro de 1885 o tratado que integrou o território de Cabinda na nação portuguesa.”
(FOTOGRAFIAS PUBLICADAS NO POST ANTERIOR)
Tudo isto é importante, mas, na verdade, o motivo que nos trouxe a Cabinda foram os trabalhadores da Mota e Companhia que continuam raptados, já lá vai quase um ano.
Não foi fácil convencer o engenheiro da empresa a dar-nos uma entrevista. Porque todas as palavras terão que ser cautelosamente pensadas e medidas, Oliveira Nunes pede-me que a entrevista seja transformada na leitura de um comunicado. Como sei que na mata vêem a RTP África e que a vida daqueles homens pode depender do que o engenheiro disser, aceito e passamos a gravar.
«Ao senhor chefe do Estado-Maior da FLEC-FAC, senhor Estanislau Miguel Boma: Sei que o senhor me vai ver e peço-lhe que pondere sobre o que lhe vou transmitir. Foram criadas expectativas muito elevadas por notícias e pessoas que nada têm a ver com este caso, lançando a confusão. O senhor deve saber que, quer às pessoas, quer aos governos, quando se lhes pede o impossível, acontece como resposta a ruptura, com todas as suas consequências. O tempo que já passou é demasiado longo. É chegada a altura de libertarem os nossos homens e criarem uma plataforma de diálogo para o futuro.»
Cada vez que me batem à porta do quarto já espero o pior. É o Pedro, um jovem engenheiro português que trabalha no enclave.
- Raptaram mais portugueses! Foi esta madrugada.
- E trabalham para quem?
- São da Soares da Costa.
- Quantos foram?
- Sete ou oito, não sei ao certo…
- Como soubeste?
- Ouvi uma comunicação num dos canais do meu rádio.
- E quem foi?
- Não se sabe. Só pode ter sido uma das duas FLEC.
Acordo o Artur e seguimos para o seminário. O padre Congo jura não saber de nada. Faz alguns telefonemas e confirma a notícia. Faltam-nos os pormenores do rapto e saber qual das FLEC é a responsável por mais este sequestro. No estaleiro da Soares da Costa, falo com alguns dos trabalhadores portugueses – agora mais calmos - e, ao saber que ainda não falaram com as famílias, disponibilizo-lhes o nosso telefone satélite. São momentos de grande carga emocional que vão funcionar bem em reportagem.
«Ó Mila, se vires alguma coisa na televisão, alguma confusão, tu não te preocupes que não é nada comigo. Pronto, é só isso, não te preocupes. Vou desligar. Tenho mais colegas que estão à espera para ligar pelo telefone da televisão.» Disco os números dos outros e vão-se juntando mais. São quase todos da região do grande Porto. O Artur Pacífico fica a saber que se cruzou com o grupo exactamente no momento em que ele estava a ser sequestrado. Ontem, noite de sexta-feira, o Artur e o Lanzinha foram tomar café à “feira”, um local com pequenas barracas transformadas
Se antes a prioridade era a FLEC-FAC, agora mudo a agulha para os da FLEC-Renovada. Numa dessas tentativas, acabo no meio de uma reunião do comité político da própria guerrilha.
- Continuem lá a discutir o que têm para resolver que nós vamos sair e voltamos no final…
- Não, não. Nem pensem. É como se já pertencessem ao comité!
Pedem que nos voltemos a sentar. Já agora tenho curiosidade em saber como eles funcionam na clandestinidade. Discutem sobre o que mandar para a mata para que os portugueses raptados tenham “os mínimos”. Na lista estão: cobertores, mantas, roupas, whisky e medicamentos. Aconselho-os a juntarem também alguns jogos que os ajudem a passar o tempo: um tabuleiro para damas e xadrez, cartas e malhas. Concordam e apontam numa folha.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro
***CABINDA PARTE III***
Na floresta com a FLEC-Renovada
Com a mão esquerda, carrega uma velhinha kalashnikov, com a direita revista-me todos os bolsos. Bate com a mão no meu peito, nas costas e nas pernas. Volta a espreitar os bolsos e diz-me que posso prosseguir. Faz o mesmo ao Artur. Aproxima-se um segundo soldado com uma mochila às costas e começo a ver outras cabeças que nos espreitam pelo meio do capim. Fazem parte do primeiro cordão de segurança. Um deles veste casaco camuflado e calças azuis da polícia. Os camuflados que trazem são de padrões diferentes, já bastante gastos, mas vêm muito armados. Aparecem mais guerrilheiros à medida que o capim cresce de altura e que nos apontam para uma zona de vegetação bastante densa. Querem que escondamos ali a pickup. Um dos guerrilheiros, também conhecidos por maquis, abraça-me como se fossemos dois velhos amigos que já não se viam há uma eternidade. Não tem uma mão. Encaminha-nos, pelo arvoredo, até um grupo de homens sentados no chão, que se levantam mal nos vêem. O Artur Pacífico vai atrás, filmando
«Brigadeiro André Mamboma, Secretário dos Assuntos Interno»”;«Adolfo Martins Malando, Chefe do Estado-Maior Operacional»; «Lágrima, chefe de segurança do Estado-Maior”; «Decisão, chefe adjunto dos Serviços Especiais». Enquanto o Artur filma, faço uma cara séria para que lá em casa não julguem que eu tenho qualquer cumplicidade com estes homens. Também eles, num passado recente, raptaram portugueses e prometem continuar a fazê-lo. Têm expressões bem diferentes uns dos outros: um tem os olhos muito abertos; outro usa óculos; o terceiro, mesmo sem falar, já está a sorrir e o último esforça-se por fazer cara de mau.
- Estão com muita pressa?
- Não, não. Ficaremos aqui o tempo de que os senhores jornalistas necessitarem. Se fosse nas nossas áreas, estaríamos mais seguros, mas aqui também estamos à vontade. Como vê, chegamos a poucos quilómetros da cidade.
- Estamos a quantos quilómetros da cidade?
- Não sabemos… Os senhores jornalistas é que podem avaliar, mas julgo que a não mais de quinze.
Sinceramente, até me parece que serão menos. Não consigo parar de pensar que ali bem perto há um quartel com tropas do governo e que poderemos ser detectados a qualquer momento. A tranquilidade deles acaba por me sossegar a mim também. Ora, se eles não se preocupam é porque têm tudo muito bem controlado.
- Já falaram com os nossos “irmãos” da FLEC-FAC?
- Não, ainda não. Vamos ficar por cá mais uns dias…
- Mas por que é que não fizeram um plano para penetrarem até às nossas áreas? Poderiam visitar as nossas bases e ir com uma imagem mais viva! Contudo, isto já não é mau.
- Quando é que contactaram com jornalistas pela última vez?
- Foi em mil novecentos e noventa. Depois disso, nunca mais apareceram. Agora voltaram vocês. Mas também não sabemos se vos voltaremos a ver.
Uma das razões por que estes encontros são tão raros é que as tropas angolanas mantêm uma pressão muito grande sobre a guerrilha, o que torna extremamente perigoso um encontro como este. Seguem-se quinze minutos de entrevistas. Primeiro, com o brigadeiro, que sorri mesmo quando fala de coisas mais sérias. Sorri quando está à vontade e sorri quando está nervoso. Tem um ar muito simpático.
- Há sempre altos e baixos, mas estamos a lutar e não baixaremos a guarda. Nunca! Só deporemos as armas quando conseguirmos a liberdade para o nosso povo.
- E o que querem de Portugal?
- Portugal cometeu um erro histórico e tem que o reconhecer. É de lamentar que permaneça no erro. Vocês conhecem bem a nossa realidade e o que lhes pedimos é que revejam a vossa posição em relação a Cabinda. Em mil novecentos e cinquenta e nove, por razões de comodidade administrativa, Cabinda passou a depender do governador de Angola. Agora, os governantes angolanos desculpam-se, dizendo que a situação actual lhes foi deixada em herança por Portugal. Ainda hoje temos afinidades com os portugueses e não queremos destruir essa amizade.
– E se Portugal não alterar a sua posição em relação a Cabinda?
- Não vamos mudar. Vamos continuar a lutar até ao fim! Só pedimos que Portugal olhe para nós, tal como fez com Timor-Leste.
– E vão continuar a raptar portugueses?
- Bom, quanto aos raptos… - o brigadeiro sabe que a questão é muito sensível e prepara uma resposta que não ofenda. - Não podemos ser considerados gangsters. A questão não é dos portugueses, é de todos os estrangeiros. Lançámos vários apelos para que se retirem, pois o ambiente não é favorável a investimentos estrangeiros. O que acha o senhor: devemos raptar os portugueses ou matá-los? Achamos que, no meio de tudo isto, é até uma medida muito humana.
- Que áreas controlam?
- Como vê, podemos fazer operações na cidade ou em qualquer outro ponto do território. Não há segurança para estrangeiros. Se Portugal continuar a investir é porque continua a apoiar o governo de Angola e o genocídio do nosso povo. Se reparar, em todos os locais em que há guerra, também há raptos. É normal que isso aconteça
– Quantos homens tem a FLEC Renovada?
O brigadeiro abre um sorriso de orelha a orelha.
- Ai, isso é um segredo da nossa organização. Temos efectivos e logística para lutar em contínuo.
– E armas?
Bate duas vezes com a mão na arma antes de me responder.
- Temos recuperado armas ao inimigo. Estas armas eram do MPLA.
A kalash que carrega é velhinha mas nota-se que está bem estimada. Chamo o segundo para entrevistar. O coronel Adolfo vai ficar com a bandeira da FLEC ao fundo. Está presa em duas estacas. O chefe operacional do Estado-Maior é, curiosamente, o único que não veio fardado. Tem uma camisa esverdeada e um colete à jornalista com muitos bolsos. De estatura baixa, compensa com um imponente chapéu de abas largas. Também ele está nervoso. Insiste em comparar a luta de Cabinda com a dos Timorenses e que não têm qualquer ajuda externa, só a do povo. O último grande confronto com as FAA foi há poucos dias e, garante que, sempre que saem derrotados nas incursões pelo interior da floresta, os soldados do governo vingam-se nas populações. Quando lhe pergunto sobre o futuro desta facção da FLEC, responde-me que «são vinte e cinco anos de luta contra uma “potente força comunista” apenas com recursos internos. Agora, talvez seja chegada a altura de pensar numa outra via, sem armas e mais racional, para resolver o problema com os angolanos. Caso isso não aconteça, lutaremos até à independência, custe o que custar!» Leio-lhe nas palavras o cansaço de quem gastou a vida nas matas e gostaria de dedicar o resto dos seus dias, calmamente, ao lado da família, sem ter que encostar a arma à cadeira. No final da entrevista, já de microfone desligado, alerto-os para as consequências dos raptos na opinião pública de um povo de quem eles se dizem amigos. Mais: nenhum governo poderá ceder à chantagem de um grupo armado que rapta cidadãos do seu país. «Os que fazem isso, agora chamam-se «terroristas» e já não há tolerância para eles.» Concordam com o que lhes digo, mas não garantem que não o voltem a fazer.
- Só voltam a lembrar-se de nós quando raptamos mais alguém!
Ao fim de duas horas, despedimo-nos e regressamos à cidade da mesma forma que tínhamos saído: tranquilamente e sem qualquer barreira militar por parte das tropas governamentais.
Se não conseguirmos a FLEC/FAC, pelo menos já não regressamos a Portugal de mãos a abanar. Só falta saber se vamos provocar os tais ciúmes junto dos outros «maninhos». Como em Cabinda não temos capacidade para editar a reportagem, esse trabalho terá que ser feito na delegação da RTP África e de lá enviada para a sede
A reportagem já está nas mãos da Direcção de Informação quando regresso ao enclave. Fica com «embargo» até conseguirmos repetir a façanha com a outra facção da guerrilha. Só será emitida nessa altura ou quando tivermos esgotado todas as manobras para chegar aos reféns portugueses. De outra forma, seríamos imediatamente expulsos.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro
***CABINDA - PARTE II***
Com os guerrilheiros da FLEC Renovada
Chegou a Cabinda o Lanzinha. Conheço-o de Lisboa. O português decide mudar-se para o nosso hotel e passamos a andar juntos. É um tipo superdivertido com sessenta anos mas com o espírito de trinta.
Consigo que o nosso número de telefone satélite chegue ao interior da floresta. Três dias depois, recebo um recado da FLEC Renovada onde se comprometem a contactar-nos quando lhes for possível e seguro. Estão muito receptivos à ideia de nos levarem para a mata, mas o meu entusiasmo vai arrefecendo há medida que o tempo passa. Já lá vão quase duas semanas e nada. Passo dias inteiros a olhar para o telefone, ora sentado no velho sofá, ora sentado no chão. Insisto em marcar os catorze dígitos do número do satélite deles de meia em meia hora, mas recebo sempre o mesmo sinal: o de desligado. Para grande incómodo do padre Congo, queimo três maços de cigarros por dia e o Artur, nada pacífico, já dá pontapés nas portas. Esta espera está a dar cabo de nós. O meu repórter de imagem quer ir-se embora. Peço-lhe que aguente mais uns dias e acaba abraçado a mim, com as lágrimas a rolarem-lhe pelo face até desaparecerem no meio da barba. Tenho um homem de cinquenta anos a chorar-me nos braços, o que demonstra o enorme desgaste psicológico desta espera. Nada me garante que vamos conseguir. Não fora o Lanzinha e teríamos quebrado. Ele é a força que já não temos. Certa noite, decide levar-nos a conhecer um grande amigo dele, o Cunha. É natural do enclave, já foi da FLEC e agora é o Administrador de Cabinda. Recebe-nos em casa e acabo por fazer mais um amigo por estas bandas. Conta-me tudo: as divergências do passado, as dificuldades do presente e aquilo que ele imagina que será o futuro. Fico com uma visão mais clara sobre a realidade do enclave.
Antes de sair de Portugal, informara-me, discretamente, sobre o comandante militar da região de Cabinda. Soube que o general Luís Mendes é um homem duro no combate, educado e fino no trato e com fortes ligações a Portugal; os filhos até estudam lá. Para minha surpresa, nem é preciso ir à procura dele, é ele que vem ao Costa do Sol para falar comigo. Convida-me para jantar no hotel. Percebo-lhe a intenção: pretende que eu seja visto com ele publicamente e assim queimar-me junto da FLEC. Se o fizer, lá se vai a confiança que a resistência começa a depositar
Um dos soldados abre o portão e encaminha-me para junto da piscina, onde está uma mesa preparada para duas pessoas. Segundos depois, desce o general, já à civil. Amável, como sempre, a conversa começa sobre as nossas vidas, sobre os filhos de cada um, sobre os percursos das nossas profissões, sobre as guerras que ele já fez e as que eu cobri. Inevitavelmente, a conversa vai parar à missão que me trouxe até aqui: chegar às duas FLEC e fazer reportagens com as duas facções da resistência. Diz que compreende, “é a tua missão.” Alerta-me, no entanto, para os perigos que vamos correr caso nos atrevamos a ultrapassar os cordões de segurança das Forças Armadas. “Podem confundir-vos!” Deixa bem claro que não é uma ameaça, apenas um aviso. Acredito na sinceridade dele, embora estejamos em papéis e em campos opostos. Eu tenho que chegar lá e ele tem por obrigação não me deixar passar. Ambos sabemos que será uma derrota para ele se eu conseguir contactar fisicamente qualquer uma das guerrilhas. Já à sobremesa, o general lança-me uma proposta para que cada um faça o seu trabalho sem entrarmos
É tal o estado de ansiedade, que não consigo dormir. A guerrilha marcou o ponto de encontro para as quatro da manhã, nos arredores da cidade de Cabinda. Preparado o material com todo o cuidado, saímos pelas traseiras do hotel a coberto da noite. Chegamos quinze minutos antes do tempo. Passam as quatro horas, as quatro e meia, as cinco, as cinco e meia e nada. Não sei se fui enganado ou se aconteceu algo de grave às pessoas que nos vinham buscar. Já nasceu o dia quando aparece o “contacto”. Diz que tiveram de se certificar de que não teríamos sido seguidos e de confirmar que da parte deles estaria tudo pronto. Entramos rapidamente no carro e viramos costas à cidade.
Uma das minhas preocupações tem sido a de não querer saber por onde nem para onde nos levam. Não me interessam os locais de passagem, as picadas ou quaisquer outras referências ao percurso que vamos fazer. É uma forma de lhes conquistar a confiança, caso contrário, demasiada curiosidade poderá levantar suspeitas desnecessárias e para a minha reportagem essas informações não são fundamentais. Seguimos numa pickup, passamos por algumas aldeias e por um quartel das FAA onde está um soldado a dormir na porta de armas. Dois quilómetros depois avisto um homem com camuflado diferente do das tropas do Governo e fortemente armado. O nosso contacto diz-me que “são eles”.
Continua...
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Luís Castro
“Nunca deveriam ser sequestrados civis, nem mantidos prisioneiros os militares nas condições da selva. São actos cruéis. Nenhum propósito revolucionário pode justificar essas acções.”
Fidel Castro
Foram os últimos portugueses raptados no enclave angolano. Um ano de cativeiro na selva e quase esquecidos pelo seu país.
Estive na floresta do Maiombe, aprendi a linguagem do mato, andei com as duas guerrilhas e fui expulso de Angola.
Durante os próximos dias vou relatar o que lá vivi e que ficou registado no livro “Repórter de Guerra”, por mim lançado em Julho do ano passado.
*** CABINDA - PARTE 1***
“Você é da Inteligência!”
Depois de passar por Luanda, sigo de avião para aquele pedaço de terra cravado entre os dois Congos, Aqui jorra o petróleo que financia mais de dois terços do orçamento do governo e que suporta a guerra com a UNITA. Instalados no único hotel que julgo existir na cidade, apenas sei que é pela Igreja que terei de começar. De resto, estou completamente às escuras. Não tenho um único contacto e os do passado perderam-se.
O taxista que nos levou do aeroporto para o Hotel Maiombe é o mesmo que agora me mostra a cidade. Vou fazendo perguntas.
- Que casarão é este?
- É o Seminário. É tipicamente colonial. Vem do tempo dos portugueses. Mora lá um tal Congo que dizem pertencer à FLEC.
- Pára, pára. Como é que disseste que ele se chama?
- Congo. Padre Congo.
- Volta para trás! Vamos lá.
O espaço está cuidadosamente tratado e somos recebidos por um jovem de simpatia contagiante. Chama-se Puati e é o ajudante do Director do Seminário. Convida-nos a entrar e a esperar pelo padre, que foi rezar missa a uma aldeia do interior. Uma hora depois chega um Mercedes branco, velhinho, conduzido por um homem de pele bem escura, alto e com cara de poucos amigos. Começada a conversa, rapidamente percebemos que há um passado em comum: fomos os dois seminaristas na cidade do Porto e estudámos na mesma altura, embora em seminários diferentes: eu, nos Missionários da Consolata, ele, nos Salesianos. Fico com a certeza de que bati à porta certa e de que este será o contacto em que deverei investir daqui
Saímos do Maiombe para o Costa do Sol na manhã seguinte e o taxista que continua a acompanhar-nos garante-me que no outro estaremos bem mais seguros. Pergunto-lhe por quê e ele diz-me que há rumores de que haverá dois quartos que estarão sob escuta. Gelo quando me diz os números e dou conta de que são os dois onde acabáramos de passar a noite. Puxo a memória atrás para recordar os telefonemas e as conversas que tivera com o Artur Pacífico. Só fiz uma chamada e foi para a minha mulher, agora, quanto às conversas com o repórter de imagem que me acompanha, até fico arrepiado só de pensar que alguém as possa ter ouvido.
Na verdade, o Costa do Sol nada tem a ver com o Maiombe. Tem empregados muito simpáticos, o cozinheiro é português e o dono acaba por nos alugar um dos seus carros. Chamam-lhe o “Polaco” e, contrariamente ao que imaginava, não é polaco de nacionalidade. É preto e natural daqui. Há só um pequeno grande problema: o hotel é sociedade deste tal "Polaco" e do governador. Nesse mesmo dia confirmam-se os meus receios: o governador não gostou de nos ver por cá e recusa-se a receber-nos ou a dar qualquer entrevista. Não vamos ter vida fácil.
O segundo dia em Cabinda é passado com alguns portugueses que vivem ou trabalham nesta província angolana. O José Morgadinho é um deles e, para além dos negócios de venda de carros, é também o cônsul português. Insiste em alertar-me para os perigos que vou correr. Seja como for, diz que estará por perto para o que for necessário.
A amizade com o padre Congo vai-se aprofundando e passamos a conhecer o outro lado daquele que é considerado “A Voz da FLEC”. É no escritório dele que montamos a nossa redacção. O telefone fica pousado no braço do sofá e o fio da antena estende-se até uma cadeira onde está a parabólica, cuidadosamente apontada desde a varanda do seminário até um dos satélites disponíveis. Este será o nosso instrumento de trabalho mais importante, por isso o melhor será que ele não fique muito exposto aos olhares indiscretos de quem passa na rua. Se o confiscam, ficamos reduzidos a quase nada. Montada que está a logística, planifico a nossa missão em três frentes: primeiro, conhecer os representantes da resistência na cidade, que, de resto, já sabem da nossa presença; segundo, tentar a ligação para um número de satélite utilizado pelos guerrilheiros que estão no interior da mata; e, por último, contactar Paris, que é onde se encontra Nzita Tiago, chefe máximo da FLEC/FAC. Iniciados os passos para as duas primeiras, e ao fim de várias tentativas, acabo por chegar à fala com o líder histórico da resistência.
- O que é que você está a fazer em Cabinda?
- Vim para cobrir a situação dos três reféns portugueses por vocês raptados há dez meses e dos quais pouco ou nada se sabe.
- Continuo a não perceber como é que chegou aí!
- Fácil. Vim por Luanda.
- Mas como é que chegou aí sem que ninguém soubesse?
- Senhor presidente, aquando do rapto anterior tentei vir cá e não correu nada bem porque “alguém” soube. Desta vez, vim por mim, ou seja, em segredo total.
- É isso que me deixa desconfiado. Sabe que tenho mais de vinte pedidos de autorização de colegas seus portugueses? Qualquer ida à mata tem que ser autorizada por mim. E você não fez qualquer pedido!
- Estou a fazê-lo agora…
- Isso não é assim!
- Senhor presidente, insisto para…
- Não vale a pena insistir. Eu sei que você está aí, não como jornalista, mas como ponta de lança do embaixador português no Zaire, do governo português e das Forças Armadas Angolanas.
- Senhor Nzita, não sei se me ria ou se tome isso como um insulto!
- Eu conheço-o como jornalista das guerras por onde tem andado, agora não sabia que também é da “inteligência”!
- Desculpe lá, mas isso é um perfeito disparate. Fique sabendo que estou aqui de peito aberto, mas tal não significa que tenha vindo cá para vos fazer qualquer favor, o mesmo se passando em relação aos governos português e angolano. Vim para contar a verdade. Se quiserem assim, tudo bem, caso contrário volto para Portugal de mãos vazias e vocês perdem uma grande oportunidade de ouvir a vossa causa relembrada na imprensa portuguesa e, claro, por todo o mundo quando as imagens forem distribuídas pela RTP.
- Temos outros jornalistas portugueses que são nossos amigos.
- Não digo que não. Agora tanto quanto sei, eles estão lá e eu estou cá! Alguém veio, arriscando o que eu arrisquei?
- Continua a não me convencer!
- Vou-lhe provar que está errado.
- Então se me quer provar o contrário, comece por fazer reportagens sobre os crimes dos soldados angolanos, sobre a pobreza que se vive aí em Cabinda e sobre a vontade de independência. Se fizer isto, talvez se arranje qualquer coisa.
- Senhor Nzita, qualquer reportagem desse tipo seria o suficiente para me expulsarem de imediato e o senhor sabe-o. Posso adiantar-lhe que já recolhemos muitas imagens e imensas entrevistas sobre esses assuntos, mas essas peças serão as últimas a serem emitidas.
- É assim ou nada!
- Pois então é nada! Até porque não é o senhor que determina o critério editorial das minhas reportagens!
- Você é que sabe. Vou desligar.
A conversa acabara comigo a gritar com a pessoa que tem o poder de determinar se a nossa vinda será bem sucedida ou se terei que regressar à redacção com um enorme fracasso às costas. O padre Congo sossega-me a angústia.
- O Nzita é assim. É um homem desfasado da realidade de Cabinda. Não se preocupe, tentarei falar com os outros maninhos.
- Com quem?
- Com os da outra FLEC, os da Renovada. Quando os da FLEC/FAC virem que vocês foram às bases da Renovada, aí serão eles a chamar-vos. É uma questão de lhes provocarmos ciúmes. Vai resultar.
Amanhã continua...
É a segunda tentativa que faço para ir a Cabinda. Dois anos antes, durante a última crise de reféns portugueses no enclave, esteve preparado um “rapto”, a mim e ao meu operador de câmara. Os guerrilheiros viriam à cidade para nos levar para a mata e assim podermos despistar o exército angolano. O plano acabou por abortar por motivos aos quais fui alheio e que são ainda demasiado recentes para serem revelados. Assim, desta vez, vou sem que ninguém saiba, nem a própria FLEC.