Sabem que há quem acredite que Jesus Cristo nasceu em Bagdade e não em Belém?
E sabem o que eles pensaram da presença da nossa GNR no Iraque?
A mesquita xiita tem dez vezes mais indivíduos armados do que a dos Sunitas. Bassim segreda-me que este local deve ser algo mais do que uma simples local de culto, a avaliar pela quantidade e pela diversidade de armas. Enquanto esperamos pelo líder xiita, um dos seus assistentes conta-me a história deste sítio: diz que Jesus Cristo terá nascido aqui, em Bagdade, e não em Belém, na Palestina, e para confirmar a teoria, mostram-nos a «prova»: uma pedra branca com menos de um metro de comprimento e cerca de trinta centímetros de largura sobre a qual – garante – Maria terá dado à luz.
Fico a perceber que os muçulmanos respeitam – e muito – Jesus Cristo e que o consideram um dos maiores profetas de sempre. O jovem xiita garante que há muita gente que vem a este local visitar ou venerar a pedra. Mas a abertura e a tolerância na mesquita de Brathá fica-se por aqui, pois, iniciada a oração, somos avisados de que não poderemos entrar no templo. “Não são muçulmanos!”
Acabada a cerimónia, o ayatollah vem ter connosco e faz um ar de espanto quando lhe digo de onde somos. “Estive há menos de dois meses em Lisboa a convite do primeiro-ministro português.” Começa por deixar bem claro que a democracia é a solução para todo o Médio Oriente, mas que os americanos cometeram um grande erro: Não tinham um plano sólido para depois da guerra. “Foi um disparate destruir tudo para recomeçar do zero”. Pergunto-lhe se sabe que há tropas portuguesas no Iraque. “Sei. Estão em Nassíria, a minha terra natal. Sabe, quando estive em Portugal, disse-o ao vosso primeiro-ministro e ao ministro dos Negócios Estrangeiros: Portugal deve ajudar apoiando hospitais, centros de saúde e escolas. Assim, os iraquianos ficarão a saber que fizeram milhares de quilómetros para nos ajudar. Que vieram para reconstruir e não numa missão militar. Estão a gastar dinheiro para nada.”
* Retirado do livro “Repórter de Guerra”
Falei com o nosso amigo Bassim.
Explodiu uma bomba a vinte metros da casa para onde foi morar.
Ele e a família estão bem.
Amanhã vai enviar-me um mail a contar o que aconteceu.
Publicá-lo-ei assim que chegue.
Entretanto continuo o relato de 2003.
Luís Castro
“Aqui dentro ainda se sente o cheiro das pessoas. E é quase impossível imaginar os horrores aqui passados, ao longo dos últimos anos, por quem não concordava com o regime de Saddam Hussein.” Assim começa uma das reportagens que mais me marcaram nesta guerra. É a visita às celas da prisão de Najaf. Começo atrás das grades, passando a mostrar os ficheiros elaborados pela polícia política do regime. A terceira parte da peça é a impressionante visita guiada feita por um dos soldados iraquianos que acabou de chegar. Raiz esteve aqui preso durante dois anos por tentativa de deserção. Após um minucioso plano de fuga que acabou bem sucedido, juntou-se à resistência no exterior. Hoje, voltou com a CIA e relata-me os horrores a que eram submetidos os presos, aqui dentro, até serem enforcados.
Desde que reentrámos no Iraque, as reportagens que vamos enviando para Lisboa são consideradas como exclusivos mundiais a meias entre a RTP e a France 2 e, como tal, difundidas para todo o mundo. A própria Euronews coloca no ar as nossas reportagens na íntegra.
Acabamos por ficar três dias em Najaf, já que há matéria com fartura para trabalhar
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Damos uma volta por Najaf e vamos parar a uma bairro onde várias habitações foram destruídas pela aviação americana. Chamam-nos para uma casa onde terão morrido cinquenta e sete pessoas e algumas ainda estão soterradas. Foi há poucas horas e é, claramente, um alvo errado. Numa rua mais à frente, percebo a “razão” de tudo isto: há muito material de guerra destruído. Os aviões da coligação bombardearam uma coluna do exército iraquiano sem se preocuparem com as casas que estavam à volta. Foi tudo a eito, tipo “bombardeamento em tapete”. Um médico conduz-nos ao principal hospital da cidade. Chegamos no momento em que um pai carrega, desesperado, uma criança nos braços. Tem as pernas queimadas, a pele dependurada e soluça porque já gastou todas as forças a chorar.
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*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
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O meu grande amigo Coutinho Ribeiro, do http://oanonimoanonimo.blogs.sapo.pt/ , escreveu que eu vim reconciliado com os americanos. Talvez. Mas devo confessar que sou do tipo perdoo mas não esqueço!
Já aqui publiquei o relato do que me aconteceu durante os dias que estive preso no Iraque. Falta contar o que se passou a seguir.
Para quem não leu, basta procurar na tag “excertos” e consultar pela ordem inversa.
Desdobramo-nos
O enviado especial do Arabnews, um dos principais jornais do mundo árabe, com edição em inglês e em árabe, escreve sobre o sucedido. No dia seguinte procura-nos, entusiasmado com o destaque que o editor (na Arábia Saudita) lhe dera ao artigo. Oferece-nos um jornal cuja primeira página é uma fotografia de nós os dois e um artigo demolidor para os americanos, onde o autor pôs na nossa boca aquilo que nós disséramos e aquilo que ele pensava. Não é que não o pensássemos também, mas o certo é que não o disséramos para evitar mais problemas. Pouco depois, liga-me o Director de Informação da RTP.
- Telefonaram-me da Embaixada e enviaram uma cópia de um jornal árabe com uma entrevista vossa. Dizem que depois disto é melhor nem lhes voltarmos a pedir mais nada. Estás queimado.
Como se não bastasse, o inquérito dos americanos aponta-nos como os únicos culpados pelo sucedido. A minha mulher pede para que me lembre que tenho dois filhos, o meu cunhado acha que sou maluco, os meus pais e a minha irmã dizem-me que não tenho que provar nada a ninguém. Todos têm razão, mas esqueceram-se que sou teimoso, muito teimoso, mesmo. Converso com o Vítor e decidimos não desistir!
Exclusive:
Western Journalists Beaten, Starved by Americans
Essam Al-Ghalib, Arab News War Correspondent
http://www.arabnews.com/?page=4§ion=0&article=24644&d=3&m=4&y=2003
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Alugamos outro jipe e formamos uma caravana com mais jornalistas. Pelo caminho, o Marcos Uchoa, da TV Globo, desiste por decisão vinda da sede no Brasil. Continuamos viagem reduzidos a quatro jipes: o nosso, o da France 2, o do Arabnews e o de um jornalista da Letónia. Marcado no GPS o ponto onde se juntam as três fronteiras (kuwaitiana, iraquiana e saudita), atravessamos sem grandes dificuldades.
Voltamos a dar de caras com um acampamento de tropas norte-americanas. O comandante mostra-se extremamente simpático ao saber que somos portugueses. A razão é simples: casou com uma indiana, neta de português. É de Goa e chama-se Cecília Gomes. Confessa-me que come habitualmente comida portuguesa com temperos indianos e que toda a família dela tem por apelidos Paiva, Conceição, Pires, Rodrigues e Fernandes. Vai buscar a fotografia da mulher – linda por sinal –, mostra-a para a câmara, encosta-a ao peito, bate-lhe com a mão, ri e diz: “ Mi amore, mi amore”.
A partir daqui, temos tudo o que precisamos. Acolhem-nos e fazem-nos revisão aos jipes. Em troca, ofereço-lhe uma chamada para casa.
- E posso?
- Claro. Diga-me o número.
Enquanto activo o telefone satélite, ele afasta-se por momentos e a Cecília atende do outro lado da linha.
- Um momento. É do Iraque.
- Mas o que se passa, o que se passa? – pergunta aflita.
- Só um momento por favor.
- Ele morreu, foi? – insiste já chorosa.
- Não, não! Ele vai falar consigo.
Grito:
- Ó major! Está aqui a sua mulher.
Risada geral no acampamento. Corre, agarra no auscultador, chora, ri e quando desliga diz-me que há várias semanas que não falavam.
Pergunta se o segundo comandante também pode telefonar. Digo-lhe que sim e faço a segunda chamada. Os soldados imitam-no e pedem para falar com as famílias, acabando por se formarem em longas filas para cada um dos três telefones satélites: o meu, o dos franceses e o do saudita. Passo o resto da tarde e parte da noite a marcar números para os Estados Unidos e a pedir aos soldados que tentem ser rápidos em cada ligação. Estes marines merecem, porque até agora foram os únicos que nos ajudaram. Assisto a momentos em que também eu acabo por ficar comovido, tal é a emoção nas conversas que estes jovens têm ao telefone depois de tanto tempo incomunicáveis no meio deste deserto.
*Retirado do livro "Repórter de Guerra"
24 de Abril de 2003, nesse dia regressava a Lisboa vindo da guerra do Iraque.
Guardo as memórias daquele mês e meio como se tivesse sido ontem. E ainda hoje, nas aulas e em visitas a escolas e universidades, ou em conferências e palestras para as quais sou convidado, não me canso de repetir um episódio que me marcou para sempre: o massacre de Al-Syidia. Fiz entrevistas a chorar e por momentos deixei de ser jornalista.
Vou partilhar convosco o que aconteceu.
A estrada que nos leva até Bagdade está repleta de gente que pilha tudo o que encontra. Já na capital, a primeira imagem que gravamos é a de um jovem que corre com dois imponentes cavalos acabados de roubar de um dos palácios do Saddam. A segunda é a do massacre de Saydia. Por sorte chegamos na mesma altura que a Al-Jazera e só nós e eles é que registamos essas imagens. Foi há dois dias, quando uma coluna de civis fugia dos combates. No caminho apareceu-lhes um militar americano levantando o punho fechado da mão direita. Como o primeiro carro não parou, os tanques e as metralhadoras abriram fogo, matando mais de sessenta pessoas. Não perceberam que aquele gesto significava parar. Procuro armas ou roupa militar, mas nada, eram mesmo civis. Se dúvidas houvesse, os pedaços de corpos espalhados pela estrada mostram claramente mulheres, crianças e alguns homens.
Os carros estão totalmente crivados de balas ou literalmente destroçados pelos tiros dos tanques. Um cenário que jamais esquecerei. Há pés, mãos, intestinos, cabeças e outros pedaços não identificados de corpos por todo o lado. Horrível. Mais ainda porque já é o segundo dia que estão expostos a um calor abrasador. Os moradores dos prédios vizinhos já enterraram alguns e é um que me relata o que aconteceu. Enquanto isso, desenterram uma mulher, três cabeças e um pé. Estão queimados e irreconhecíveis. Um dos populares puxa-me para que eu veja mais de perto. Aproximo-me agora de um grupo onde alguém levanta as mãos ao alto e chora.
- Americanos? – pergunto.
- Claro que foram os americanos! Há alguns minutos, um soldado veio pedir-nos desculpa. Pedem desculpa… Eu perdi dois irmãos e ele disse que está infeliz pelo que fizeram? Veja, o meu irmão só tinha vinte e oito anos! É esta a democracia da Europa e do Ocidente? Saddam é um criminoso? É, têm razão! E isto? Isto que está a ver neste local poderá voltar a ver mais à frente, a três quilómetros daqui.
Vêm-me as lágrimas. O americano de quem este homem diz ter recebido o tal pedido de desculpas é um soldado de vinte e dois anos que veio da Califórnia. Foi o primeiro a disparar. Quando abandonamos o local, os americanos que assistiam a tudo debaixo de um viaduto começam a arrastar as carcaças retorcidas para fora da estrada. Ao mesmo tempo, mais uma coluna americana dá entrada na capital e os voluntários que, de bandeira branca nas mãos, retiram os mortos levantam os braços em sinal de submissão para que também eles não sejam confundidos com o inimigo.
Entro no jipe a pensar como é que ninguém ensinou a estes soldados que, por aqui, o sinal para mandar parar se faz virando a palma da mão para cima, juntando os cinco dedos e movimentando-os para cima e para baixo? Por que razão é que um iraquiano que foge da morte tem que saber que um punho fechado é o gesto militar para parar? Não se prepararam estudando a cultura e as tradições locais? Que comandantes são estes, mais os generais que estão no Pentágono? Então, não sabem que quando nos estamos a afundar, nem que seja o braço do nosso maior inimigo, é a ele que nos vamos agarrar? Não seria isso que esta gente tentava fazer: fugir para o lado dos mais fortes e aí encontrar segurança? Sinto-me cada vez mais revoltado.
Retirado do livro "Repórter de Guerra"
Aqui fica a conclusão do que me aconteceu em 2003. Nessa altura fui preso e expulso da linha da frente pelo mesmo exército que hoje me levou para a guerra.
As voltas que a vida dá.
Luís Castro
Excertos do livro Repórter de Guerra, editado em Junho de 2007
Continuo engajado com os americanos.
Deixo-vos a segunda parte do relato iniciado no Post anterior e relativo ao que me aconteceu em 2003, quando fui preso a cem quilómetros de Bagdade.
Espero dar notícias frescas brevemente.
Luís Castro
Tal como prometido, cá vai a primeira parte.
Responderei a todos os comentários quando regressar.
Até breve
Luís Castro
“Como se amaciam os jornalistas” Iª parte
Excertos do livro Repórter de Guerra, editado em Junho de 2007